Liberte Nosso Sagrado
Durante o período da
Primeira República (1889-1930), uma prática comum da polícia era perseguir os
cultos das religiões de matriz africana, invadindo terreiros e apreendendo objetos sagrados. Apesar da Constituição
de 1891 garantir a liberdade de crença e culto, o Código Penal de 1890
criminalizava essas casas sagradas tipificando as manifestações como
curandeirismo, baixo espiritismo e exercício ilegal da medicina.
Numa clara manifestação
de racismo religioso promovido pelo Estado, os terreiros eram violados, os religiosos
presos, e seus objetos sacros apreendidos. Esse Código Penal estabelecia,
portanto, uma legislação que legitimava o racismo religioso, representando um
instrumento que faz parte do racismo estrutural brasileiro. Não podemos esquecer que esse
mesmo Código também reprimia a
capoeira e o samba, ou seja, criminalizava quase tudo que era
oriundo da cultura
afro-brasileira. A partir da compreensão que os objetos sagrados foram
apreendidos por uma lei ilegítima e racista, é preciso reconhecer que
ocorreu uma injustiça
histórica com as religiões de
matriz africana. O
Estado deve reconhecer os
crimes cometidos durante todos esses anos em que as religiões
afro-brasileiras foram perseguidas e os anos que estes objetos sagrados estão
presos.
Estas peças estão
atualmente aprisionadas no Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de
Janeiro. As peças foram denominadas “Coleção Magia Negra” e, antes de
serem encaminhadas para a reserva técnica na década de 1990, ficavam expostas
junto a bandeiras nazistas e armas, numa clara
profanação e desrespeito ao sagrado afro-brasileiro.
Em
2010, o Museu da Polícia fechou as portas, pois necessitava de obras
estruturais e verba para que pudesse ser reinaugurado. Ou seja, além da falta
de acesso, ainda nos deparamos com a inadequada condição de conservação dos
objetos sagrados, que possuem importância ímpar para o melhor conhecimento da
história de nosso país.
Por que precisamos
libertar as peças sagradas? O fato dessas peças estarem sob a posse da Polícia
Civil há mais 100 anos revela que pouco avançamos em relação ao respeito à
pluralidade e diversidade religiosa, em nosso país. Mais do que necessária, a
libertação do acervo sagrado é urgente!
Atualmente, a coleção encontra-se em caixas e dentro de uma sala não
climatizada. Além disso, não há informações sobre o seu real estado de
conservação. Estudiosos, cineastas e o povo de terreiro não conseguem acessar o
acervo.
Breve
História da coleção “Magia negra”
Desde o período colonial (1500-1822)
as religiões praticadas pelos indivíduos trazidos a força do continente
africano como escravos foram perseguidas, criminalizadas e vitimadas pelo
racismo religioso. Mesmo com a vigilância e o controle dos senhores e dos
capatazes, os escravos conseguiram cultuar seus orixás, seus deuses e suas
religiões. Após a independência do Brasil em 1822, esse cenário não mudou e as
religiões de origem africana permaneceram sendo perseguidas e combatidas pelo
Império, que tinha como religião oficial o catolicismo.
Em 1889, o Brasil deixou de ser uma
Monarquia e tornou-se uma República e, apesar de a Constituição de 1891
estabelecer o Estado laico, as religiões afro-brasileiras continuaram sendo
criminalizadas. No Código Penal de 1890, os artigos 156, 157 e 158 proibiam: “o curandeirismo, a prática ilegal
de medicina, o baixo espiritismo, a magia e seus sortilégios, bem como usar
talismãs e inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis”. Esse artigo
criminalizava as práticas religiosas de origem africana e legitimava que as
forças policiais cometessem abusos e atrocidades contra os adeptos dessas
religiões e seus locais de culto.
O resultado foi que, durante a
Primeira República (1889-1930) e a Era Vargas (1930-1945), a polícia perseguiu
e invadiu centenas de centros de umbanda e terreiros de candomblé não só na
cidade do Rio de Janeiro, mas em todo o país. Essas violações ocorreram
especialmente a partir das denúncias recebidas pela polícia. Os yalorixás, babalorixás e religiosos eram
presos e incriminados pelos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal. Eram
instaurados processos em que a polícia buscava comprovar que o acusado ou
acusada era um "feiticeiro perigoso" e que fazia "feitiços
maléficos".
![]() |
Foto: Ian Cheibub |
Em 1945, o acervo afro religioso foi
transferido para o Museu de Criminologia, posteriormente chamado de Museu da
Polícia. O acervo foi nomeado de maneira pejorativa e discriminatória como
“Coleção de Magia Negra”. Permaneceu durante anos sendo exposta aos visitantes
ao lado de outros objetos apreendidos como armas, falsificações, bandeiras
nazistas e integralistas, dentre outros objetos associados ao crime. É
importante ressaltar que os objetos sagrados afro-brasileiros eram expostos de
maneira desrespeitosa, uma vez que eram considerados "amaldiçoados" e
possuidores de "energias maléficas". Inclusive os funcionários do
Museu alertavam os visitantes para o “perigo” representado por tais objetos.
O prédio onde funcionou e funciona
hoje o chamado Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro também foi durante os
anos da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) sede do Departamento de Ordem Política
e Social (DOPS). Neste local, centenas de militantes foram presos e torturados
nos "anos de chumbo". Foi nesse local que Olga Benário ficou presa
antes de ser deportada para a Alemanha, onde seria assassinada pelo regime nazista
de Adolf Hitler. Pelo valor sacro e religioso que essas peças têm para milhões
de brasileiros as mesmas não podem permanecer em um prédio que carrega uma
memória tão negativa e que foi centro de inúmeras ações violadoras dos direitos
humanos.
Em
razão de um incêndio que atingiu o edifício do Museu da Polícia em 1989, muitos
desses objetos sagrados aprisionados foram danificados, enquanto outros
desapareceram. Desde 1999, a então chamada “Coleção de Magia Negra” deixou de
ser exposta ao público. A direção do Museu não tem explicações para tal
decisão, o que nos leva a uma interpretação de que tal decisão foi tomada
provavelmente por motivos de racismo religioso. Atualmente, o acervo
encontra-se em reserva técnica e, apesar de pouca coisa ter mudado, essa breve
história atesta como as religiões afro-brasileiras e seus adeptos foram vítimas
do racismo religioso estatal durante a primeira metade do século XX. O fato de
há 100 anos essas peças estarem sob a posse da Polícia revela que não avançamos
na garantia do direito à pluralidade religiosa. Trata-se de uma ameaça
a liberdade de culto.
![]() |
Sacerdotes e Sacerdotisas de terreiros do Rio de Janeiro apoiam a campanha. Foto feira durante as homenagend do Prêmio Iya Nitinha de Osun. Foto: Paula Jardim Duarte |
Porque
precisamos libertar o sagrado afro-brasileiro.
A apreensão dessa coleção é um terrível
crime contra a fé afro-brasileira. Mais do que objetos de culto sob o domínio
do Estado racista, trata-se de representações vivas de divindades ancestrais
africanas e das forças da natureza que são cultuadas. Nos ritos, os colares se
tornam sagrados, os atabaques, após sacralizados, se transformam verdadeiras
divindades, capazes de trazer as deusas e deuses, para a África que se
reconstrói nos espaços do terreiros. As peças são todas sagradas por
excelência. São imagens vivas, são corpos negros, e assim como a maioria dos
corpos negros afro-brasileiros, foram e ainda são violentados e estão encarcerados
no Museu da Polícia Civil pelo processo racista e eugenista que segue em curso
desde a invasão das terras brasileiras pelos europeus.
Por
todo esse histórico, se faz urgente que o Estado, para além do reconhecimento das violações ao
longo dos séculos, estabeleça uma reparação histórica aos praticantes das
religiões afro brasileiras. Desta maneira, cabe ao Estado algumas ações no que
tange à reparação histórica dessas religiões que foram violentadas,
criminalizadas e perseguidas pelos órgãos estatais. O primeiro passo para
reparação histórica é a libertação do acervo sacro afro-religioso que se
encontra no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O segundo passo, é a
criação de um Museu das Religiões de Matriz Africana que abrigue este e outros
acervos, que exalte a história, a liturgia, as práticas, os objetos das
religiões afro-brasileiras, e ao mesmo tempo que aborde a intolerância e o
racismo religioso na história do Brasil. Da mesma maneira que as peças
religiosas católicas estão no Museu de Arte Sacra do Rio de Janeiro, objetos
sagrados dos judaicos encontram-se no Museu Judaico do Rio, este acervo afro
religioso deve estar em um Museu que exalte e respeite o valor religioso,
histórico e artístico dessas peças.
![]() |
Foto: Paula Jardim Duarte |
Ações
da campanha Liberte Nosso Sagrado
A articulação em torno da campanha
Liberte Nosso Sagrado foi iniciada em março de 2017 a partir do contato com
lideranças religiosas das diferentes religiões, pesquisadores ligados a
universidade, representantes de organizações da sociedade civil. Uma primeira
reunião de apresentação da campanha foi realizada a partir da iniciativa do
Mandato Coletivo do Deputado Estadual Flávio Serafini (Psol), ocasião em que
foram discutidos detalhes sobre como a campanha seria lançada. Ficou decidido
que algumas ações seriam realizadas. Está sendo organizada uma representação
para o Ministério Público que contará com a adesão de terreiros de candomblé e
umbanda, organizações da sociedade civil e pesquisadores que se dedicaram ao
tema nos últimos anos. Criamos uma página no facebook que está sendo atualizada
diariamente com informações sobre atos públicos e através da qual todos nós
podemos manifestar o nosso apoio com a publicação de uma foto com o cartaz da
campanha com a #LiberteNossoSagrado.
Em paralelo a essas ações, estão sendo realizadas reuniões com representantes de museus e instituições que possam receber essa coleção, pois o grande desafio é que ao longo desses anos não houve nenhum esforço de pesquisa que buscasse identificar o contexto em que as imagens foram apreendidas e/ou o terreiro de origem de cada peça. Também está sendo produzido pela Quiprocó Filmes o documentário “Nosso Sagrado”, em que será abordado o aprisionamento do acervo afro religioso no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde o início do século XX, através de entrevistas com parlamentares, pesquisadores, lideranças religiosas, museólogos e militantes da liberdade religiosa. As filmagens estão acontecendo e a previsão de lançamento é para o segundo semestre de 2017.
Em paralelo a essas ações, estão sendo realizadas reuniões com representantes de museus e instituições que possam receber essa coleção, pois o grande desafio é que ao longo desses anos não houve nenhum esforço de pesquisa que buscasse identificar o contexto em que as imagens foram apreendidas e/ou o terreiro de origem de cada peça. Também está sendo produzido pela Quiprocó Filmes o documentário “Nosso Sagrado”, em que será abordado o aprisionamento do acervo afro religioso no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde o início do século XX, através de entrevistas com parlamentares, pesquisadores, lideranças religiosas, museólogos e militantes da liberdade religiosa. As filmagens estão acontecendo e a previsão de lançamento é para o segundo semestre de 2017.
![]() |
APOIE ESSA CAMPANHA. Imprima o cartaz, faça sua foto e publique com a tag #LiberteNossoSagrado |
Fernando Sousa –Diretor da Quiprocó Filmes e pesquisador
associado ao Instituto de Estudos da Religião (ISER). Dirigiu com Tais Capelini
e Alexandre Borges o documentário “Intolerâncias da Fé” [Canal Futura], além de
assinar o roteiro e a produção do filme. Junto com a Stela Guedes Caputo, dirigiu
o vídeo “Axé com Freixo”, realizado no âmbito da candidatura de Marcelo Freixo
para a prefeitura do Rio de Janeiro. É um dos colaboradores da campanha Liberte
Nosso Sagrado e é um dos diretores do documentário “Nosso Sagrado”.
Gabriel Barbosa – Diretor da Quiprocó Filmes. Cursa o
doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). É pesquisador associado ao
Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ). É um dos
colaboradores da campanha Liberte Nosso Sagrado e é um dos diretores do
documentário “Nosso Sagrado”.
Jorge Santana – Coordenador da campanha Liberte
Nosso Sagrado. É professor de História e Mestre em Ciências Sociais. Faz parte da
equipe da campanha Liberte Nosso Sagrado e da equipe de produção e direção do
documentário “Nosso Sagrado”.
Roger Cipó - Fotógrafo pela Escola São Paulo. Sua
pesquisa de imagem etnográfica estuda as experiências de fé e relação de
adeptos das religiões de matriz africana com os territórios sagrados e suas
comunidades. É gestor da Olhar de um Cipó, plataforma digital contemplada com o
Prêmio Almerinda Farias Gama para Comunicadores Negros (2016). Dentre seus
trabalhos publicados e expostos estão as séries "Oju: Quando olhares
contam histórias" (2013), "Oju Mimo" (2015), Gravidez Sagrada
(2016), "A beleza da Identidade" - ensaio para o a publicação
Ocupação Abdias do Nascimento (2016), e compôs o livro "Herança Africana no
Rio de Janeiro", sob coordenação de Milton Guran. Seu trabalho mais
recente é a exposição fotográfica "AFÉTO", que segue em cartaz até 2
de setembro de 2017, na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea, dentro da
programação do FotoRio - Festival Internacional de Fotografia do Rio de
Janeiro.