As divindades africanas foram generosas na concepção da
religiosidade negra que, por mais complexa que seja, assegurou o espaço da
reencontro ancestral de seus filhos com a realeza preservada no DNA, que fora
sucumbida pela opressão social e os vestígio, sempre tão presentes, da
escravidão.
Certa vez, conheci
Maria e nunca mais a esqueci.
Mulher de posição
firme como sua pele negra brilhante que não envelhecera com o tempo. Dona de um sorriso lindo em diamante que facilmente brotava no rosto de fortes
expressões, combinado a um olhar que tudo via, e via adianta do nosso tempo.
Maria, Vó e Mãe que sozinha, deu conta de criar @s filh@s, “tudo homem feito e mulher véia já” – como dizia e lembrava como os meninos aprenderam a se virar cedo porque ela, dona de uma força que só ela conhecia, trabalhava fora o dia inteiro, pegava três conduções e quando chegava em casa, as crianças já estavam dormindo.
Ela era como uma
heroína
Passava grande parte do tempo no seu uniforme de doméstica,
cozinhando, limpando, encerando, lavando e cuidando dos filhos dos bacanas,
enquanto suas crianças cresciam á boa sorte, guardados somente na fé que a Mãe
tinha nos Deuses Africanos.
Mas o mundo inteiro mudava quando Maria se preparava para pisar o solo de seus Orixás.
Mas o mundo inteiro mudava quando Maria se preparava para pisar o solo de seus Orixás.
Por mais bem passado e limpo que era seu avental branco, não
chegava "aos pés" da goma de sua saia, alva como as contas leitosas
do brajá de Oxalá que ostentava no pescoço. Na cabeça, o simples torço
costurado a mão, no pano mais barato da 25 de março, lhe permitia a realeza que
a touquinha das casas de patroas escondia.
Quando Maria descia a rua e era saudada por todos aqueles que de
branco passavam.
Quem via de longe, nada entendia.
Quem via de longe, nada entendia.
"Oxe... Olha lá... Dona Maria parece o Papa. O povo
todo para pra beijar sua mão."
Resmungava indignado o dono do bar, que mal sabia que por suas vistas passarva uma autoridade maior que o soberano do Vaticano.
Resmungava indignado o dono do bar, que mal sabia que por suas vistas passarva uma autoridade maior que o soberano do Vaticano.
Desfilava a Rainha do Terreiro, Mãe Maria, que já na descida,
juntava sua comitiva de filhos, netos e bisnetos de santo.
Eles vinham orgulhosos como seguranças da majestade que seguia
para o barracão.
A Rainha ia andando porque nunca dependeu de carona nenhuma, e gostava de andar pelas
ruas do bairro que ela mesmo lutou para ser asfaltado e ter água encanada.
"Mas eu fui lá e briguei com aqueles homens tudo porque falaram que o caminhão do lixo não conseguia passar na rua. Como não? Tem que passa sim!" contava, e acrescentava orgulhosa: - "Nem bagunça tem mais por aqui. Os meninos do movimento agora vão para o Terreiro, e mudaram muito, viu... Se engana que pensa que é só o povo da igreja que salva. Quem salva do mundo é Orixá!"
"Mas eu fui lá e briguei com aqueles homens tudo porque falaram que o caminhão do lixo não conseguia passar na rua. Como não? Tem que passa sim!" contava, e acrescentava orgulhosa: - "Nem bagunça tem mais por aqui. Os meninos do movimento agora vão para o Terreiro, e mudaram muito, viu... Se engana que pensa que é só o povo da igreja que salva. Quem salva do mundo é Orixá!"
Ela, mesmo que Rainha, sempre soube do seu lugar perante os Orixás.
Obediente, parava sempre na última encruza antes do terreiro,
tirava as sandálias de salto baixinho, dobrava-se calada em paó, tomava benção
de Exú e só seguia depois de sentir o vento em seu rosto.
"Se Exu não deixar eu entrar, não entro. Se ele barra santo
na porta de Oxalá, pode me barrar quando quiser!"
Respeitosa como ninguém, pedia agô no portão, esticava o braço e
com cuidado punhava a quartinha para despachar a rua.
Rainha Mãe, não se importava em rodar a aquela velha quartinha de
barro na cabeça de cada filho que a acompanhava no cortejo real.
E era a partir daquele portão que a magia acontecia.
Naquele lugar não
tinha patroa, nem filho bocudo de patrão folgado.
Não mais empregada. No mundo dos Deuses Africanos, Maria servia com muito Amor seus Orixás, cuidava do mais novo ao mais velho, com o mesmo zelo.
Abraçava e amava todos filhos e todas as filhas santo com a mesma porção de
afeto. E muito afeto.
Naquele lugar, a
opressão não tinha espaço.
Naquele lugar, a
força de Maria não se restringia em copa de granito importado e não era
invisível como na casa dos bacanas que a tinha como "quase da
família".
Ali, naquele
barraco de telha cinza e paredes caiadas com frequência e zêlo, Mãe Maria podia
ser quem ela era e não silenciada como no edifício nobre da Vila Mariana, onde,
todas as manhãs, entrava e saia calada pelas portas de serviços.
Era assim, naquele
punhado de Terra, ocupado há décadas, que Maria viveu a dignidade de ser
respeitada, amada e olhada em sua essência.
Porque era só ali, no chão desnivelado que a autoridade era reconhecida pela grandeza que só podia ver, quem a via com o coração - coisa difícil para os patrões das casas grandes que até hoje se perpetuam, e com míseros salários, insistem numa escravidão social que vitimiza nossos reinados de resistência.
Era naquele cantinho de terra, onde se respirava a ancestralidade africana que a felicidade de Mãe Maria se completava, pois à luz dos Orixás, sua estrela se mantinha iluminada.
Porque era só ali, no chão desnivelado que a autoridade era reconhecida pela grandeza que só podia ver, quem a via com o coração - coisa difícil para os patrões das casas grandes que até hoje se perpetuam, e com míseros salários, insistem numa escravidão social que vitimiza nossos reinados de resistência.
Era naquele cantinho de terra, onde se respirava a ancestralidade africana que a felicidade de Mãe Maria se completava, pois à luz dos Orixás, sua estrela se mantinha iluminada.
Texto e Imagens: Roger Cipó © Olhar de um Cipó - Todos os Direitos
Reservados / All Copyrights Reserved
[Esse texto é uma
homenagem às tantas Marias que conheci nesse pouco e importante tempo de vida
religiosa. Muitas são as Senhoras Mães Guerreiras que vivem mundos diferentes
para uma vida melhor, sempre com Orixá no Coração. Sem nenhuma relação direta (que eu saiba rsrs) com o texto, as fotos são para ilustrar a história e inspirar nossas vidas em
imagens.]
Fictícia? Não há história mais real do que essa!
ResponderExcluirah Cipó, nao me faz chorar...lindo!
ResponderExcluirLindo e emocionante porque não tem quem não conheça algumas Marias. É impossível não ter empatia!
ResponderExcluirParabéns
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirComo não se emocionar com uma "história" linda como essa?
ResponderExcluirAi meu Pai Omolu! Que lindooooo! Amei o blog... <3 :'(
ResponderExcluirAi meu Pai Omolu! Que lindooooo! Amei o blog... <3 :'(
ResponderExcluirQue coisa linda, me fez derramar boas lágrimas. Gratidão ❤
ResponderExcluirLindo Texto ! Pode ate ser fictício, mas mostra de forma verdadeira a historia de muitas " Marias " !
ResponderExcluirMuito bonito e interessante o texto. É a Literatura revelando a realidade e extrema importância das "Marias dos Terreiros". Mulheres guerreiras que, embora nos espaços eurocêntrico têm o brilho ofuscado pela discriminação racial, nos espaços sagrados têm um valor incomensurável- a sabedoria e glória dos Ancestrais. Devemos muito a essas "Maria" que por muitos anos lutaram para afirmação da nossa identidade afro-brasileira!!!
ResponderExcluirParabéns Roger que texto maravilhoso, me emocionei.
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