As religiões de matriz africana, o Estado e a
sociedade: os desafios contemporâneos doethus e na práxis.
Celso Ricardo Monteiro para Olhar de um Cipó
O presente artigo é um resumo, fruto
da Conferência de abertura sobre os avanços e desafios das religiões de matriz
africana na contemporaneidade, por mim na V Plenária do Fórum Regional de
Promoção da Igualdade Racial de Sorocaba, em Setembro de 2017, motivo que muito
orgulha. O re-encontro com os velhos amigos, as novas amizades e avaliação da
conjuntura, foram de fato, motivos de muita emoção em tal oportunidade.
No momento em que acontece o FORPIR,
a sociedade brasileira assiste “calada” aos ataques de que foram vítimas os
Terreiros do Rio de Janeiro, mais uma vez, agora com um requinte de crueldade,
pouco conhecido por parte de todos nós, o que envolve um sujeito, que eu
classificaria como bandido evangélico, cuja missão é “limpar o morro” da força
do Satanás, em nome de Deus. Falo com base nos vídeos amplamente difundidos por
meio das diversas redes sociais ao longo de Setembro de 2017. Bem, á bem da
verdade, várias coisas tem acontecido nesse país, em nome de Deus, entre elas,
a possível morte do meliante, como que em um ato de vingança, cuja autoria
também se deu de forma bem singular. Entre os casos que nós conhecemos, depois
do ataque equivalente ao Terreiro de Bagan em Brasília, liderado por Mãe
Baiana, soma-se o ocorrido com a Iyalorixá que teve que quebrar seu quarto
sagrado, com as próprias mãos e o Pai de Santo usando camiseta com a imagem de
Cristo, que de igual forma destruiu os seus fios de contas, além dos recentes
ataques aos Terreiros de Carapicuíba e Jundiaí, no Estado de São Paulo. Isso tudo, logo depois do falecimento de Mãe
Beata e Ogan Marmo.
Para a honrosa conferência, partimos
do princípio de que existe no Brasil uma intensa encruzilhada entre a laicidade
e a intolerância religiosa, cuja profundidade só nos surpreende. Vejamos os
pressupostos elencados nesse certame:
1.
A
Constituinte de 1.998 nos garante o direito à liberdade de fé e de crença no
Brasil, mas por vezes, a teoria se contradiz á prática, no que se refere à
diversidade de sujeitos, nos informando que a sociedade tem um modelo de homem a
ser seguido, como nos conta a história da civilização humana;
2.
Alaicidade
é uma característica do Estado democrático e de direito, porém, os casos de
violência promovidos por violência religiosa são uma crescente na nação
brasileira;
3.
Para
efeito de organização do argumento a ser usado em defesa das comunidades
tradicionais de Terreiro, a diferença existente entre nós, sereshumanos que
pagamos impostos (também de forma desigual), édo campo jurídico apenas, mas, todo
e qualquer cidadão deve gozar dos mesmos direitos e deveres perante o Estado;
4.
Essa
diversidade de sujeitos de que tratamos cotidianamente, tem sido objeto de
estudo, texto de discurso político, justificativa de projeto, mas
desconsiderada na prática. Vide o impacto da intolerância religiosa na sala de
aula;
5.
A tal
laicidade que falamos tanto, refere-se conceitualmente à neutralidade
necessária para governar, diante das especificidades das organizações
religiosas existentes no mesmo território, considerando que, para muitos, essa
ampla diversidade religiosa, divide espaço com ampla harmonia. O direito ao
aborto é um exemplo brilhante disto;
Ao
estudar os contextos em que estão os Terreiros do país, faço isso ao menos há
duas décadas em média, provocado por Piercucci, avalio que as vulnerabilidades
só aumentam, uma vez que, além de estarem estabelecidos sempre nas periferias
do país, onde estão os piores índices de desenvolvimento humano, acesso à saúde
e à educação e outros bens, recursos e serviços, vão lidar com o impacto da
intolerância religiosa e do racismo, nesses mesmos territórios e na relação com
o aparato do Estado.
A
realidade dos Terreiros, segundo os bancos de dados oficiais, com ampla
invisibilidade, inclusive, além das pesquisas científicas, demonstra que a
intolerância religiosa é crescente em função da intensa busca pela garantia de
um Deus único, salvador, capaz de mover pedras e montanhas, o que configura um
projeto ideológico, de poder, cujo objetivo gira em torno dos interesses
políticos de um grupo, em detrimento de outro. Ora, é em nome de Deus que esse
fenômeno social acontece bem nos nossos quintais. É uma luta diária em torno da
garantia de direitos constitucionais e em meio à singularidade das pessoas,
além do direito à propriedade.
O
imaginário popular indica-nos certo ódio em meio a uma desigualdade acirrada
que surge em meio às diferenças étnicas e ideológicas existentes nesse
universo, que reúne pretos, pardos, amarelos, brancos e índios, além das
diferentes classes sociais que estes compõem. É fruto doracismo, imputado a
população negra ao longo da história, logo, apenas uma fatia do processo que
pretende dizimar a população negra e conta, entre outras, com o processo de
branqueamento e o capitalismo para isso.
Mas,
A
ancestralidade é um valor central, que serve de base para o Terreiro, mas, mais
do que isso, é o referencial de toda e qualquer pessoa. Aliada à descendência,
a voz dos ancestrais se dá por meio dos diferentes caminhos da vida, seja no
âmbito espiritual da consulta e das oferendas, seja cotidiana e rotineiramente,
da porta de nossas casas pra fora, pra o mundo, na relação com a sociedade
ampliada. Os entraves de uma vida tranqüila também são parte desse encontro.
(MONTEIRO, C.R; 2016)
Apesar
das inúmeras políticas públicas implantadas no país dos últimos anos (o
cadastro de diferentes sacerdotes junto ao INSS é uma delas), o que nos parece
uma contrariedade, o Estado democrático está repleto dessas pegadinhas. Assim,
os desafios presentes na relação entre o Estado, a religião e a sociedade vão
indicando também, a presença inconstitucional do Estado (formado por gente, que
representa diferentes visões de mundo e interesses) em universos que são
exclusivamente do campo da fé e crença.
Esse é outro fenômeno que não pode ser ignorado aliado ao fato de que, nesse
mesmo cenário, os Terreiros perderam mais uma importante batalha: o STF
entendeu que a Escola pública, universal e de qualidade, que tanto sonhamos, em
meio á essas inúmeras cenas de intolerância, deve ofertar ensino religioso –
confessional. Já, o contrário como todos
sabem, é fato consumado. E, o amplo envolvimento, a participação e convite a
certas organizações religiosas, para tomada de decisões importantes, sempre em
detrimento de outras, além da benção às determinadas instituições para
determinados atos, são uma constante no Brasil republicano.
Á
essa análise soma-se os inúmeros casos de vilipêndio que acontecem diariamente
no país, sem repercussão, tampouco resposta por parte das organizações governamentais,
que se omitem ou não possuem mecanismos possíveis de contenção dos casos, ou
punição dos mesmos, muito embora o marco legal seja claro e objetivo. Os
limites dessa relação obscena deveriam ser pauta dos grandes debates, creio eu.
Ao estudar o “Relatório sobre
Intolerância e Violência Religiosa no Brasil” do governo federal,
publicado em 2016, tem-se que o
documento (cuja publicação de dados similares inexiste no Estado de São Paulo,
apesar da criação da DECRADI), foi organizado com base no levantamento de dados
e informações em órgãos públicos que aponta que a intolerância religiosa e os
episódios de violência possuem grande invisibilidade, mas os casos giram em
torno do uso de categorias específicas, como macumbeiro, demônio, diabo.
Com
a violência gerada por ódio em meio à intolerância, segundo o texto,“organiza-se
assim um sistema acusatório, baseado na maioria das vezes em emoções e em um
plano inconsciente de compreensão, que demarca fronteiras no espaço social.” (BRASIL,
2016, p.59).As tais fronteiras conhecemos bem, visto que a cada encontro
casual, na saída do culto ou na volta do Terreiro, há sempre uma pedrada
esperando alguém, como no caso da criança agredida há alguns anos atrás, também
no Rio de Janeiro eque parece já ter caído no esquecimento. Note que nesse
caso, em particular, o autor da ofensa não foi o tráfico.
As
violências por motivação religiosa nas denuncias recebidas por Ouvidorias entre
2011 – 2015, diz o documento, são:66% de ordem psicológica; 09% de ordem moral;
07% de ordem institucional e 03% por negligência;87% das denuncias recebidas
por Ouvidorias são de danos psicológicos e 07% de ordem física;36% das
violações dá-se em casa, 11% na rua e 2% no universo da saúde pública; as
vítimas em sua maioria são adultas, mas as ocorrências também reúnem crianças e
idosos.
Entre
as vítimas, 47% declaram-se de pardas;17% são pretas; 51% das ocorrências são
contra pessoas do sexo masculino e a maioria dos casos refere-se a vitimas
pertencentes a religiões de matriz africana, com um total de 27%,contra 35% sem
informação declarada, 16% de religião evangélica e7% de religião espírita.
Entre
os 84 agressores categorizados, 17% eram de religião evangélica;52% eram
mulheres; 81 % eram adultos; 53% eram brancos; e73% não tinham informação sobre
religião;
Ainda
sobre os agressores, o estudo demonstrou que27% eram vizinhos, 23% eram família
e12% eram gestores.
O
enfrentamento à violência que acontece em diferentes níveis implica em avaliar
o como as práticas de intolerância ocorrem no cotidiano da sociedade e,
elaborar respostas que atendam as necessidades básicas dos seguidores de
religiões afro-brasileiras, para assim, garantir efetivamente o direito ao
livre exercício da religião deveria ser uma estratégia para garantia da
laicidade. Mas como sabemos isso não ocorre.Os desafios são inúmeros: a recente
Lei do Abate e ação civil pública, em que o objeto é o sacrifício de animais
nas comunidades de Terreiro, ignorando, o uso cultural do abate, em outros
espaços e instituições, além da histórica atuação da Igreja Universal do Reino
de Deus e as demais Igrejas neopetencostais, via canais abertos de TV,
financiados pela União, muito embora o povo de santo tenha se manifestado junto
ao STF e a Igreja, condenada a ofertar direito de resposta, compõem esse
cenário.
Além disso, se existem avanços
políticos na sociedade, é fundamental lembrar que esses não alcançam quem mais
precisa deles e nesse universo, existe uma densa quantidade de pessoas
declaradamente negras, que compõem os Terreiros. É, portanto, a transformação
da sociedade e dos indivíduos,para além da Escola e da sala de aula, um dos
principais objetivos que se deve seguir, visto que, em se tratando de políticas
públicas, existe uma lacuna profunda entre as tais conquistas significativas e,
a ampla lista de desafios a serem enfrentados. Essa transformaçãodeve seguir com
vistas às possibilidades de respostas coletivas, que vão da organização da
sociedade á construção de um Estado realmente livre de preconceito e
discriminação. Aqui, mais uma vez, está em pauta, o direito á propriedade, mas
me refiro, à propriedade da vida e da liberdade do outro e, ao que tudo indica
o opositor não está brincando.
Esta reorganização
da sociedade de que tratamos aqui, dá-se, porém, com a perspectiva de mudanças
impactantes, capazes de envolver a todos, em pé de igualdade, em todo o ciclo
de vida, individual e coletiva, nas diferentes esferas da vida privada.
O
famoso Tribunal de Valladolid (Espanha de 1.550), que ainda não acabou,
demonstra, porém, que as divergências são da natureza humana, em busca de poder
sobre o outro, razão pela qual é preciso adestrar e disciplinar os indivíduos, como
quer Foucault,civilizando-os e tornando-os aceitáveis, a partir da avaliação
etnocêntrica do que é o mundo melhor para todos. Com um tribunal histórico,
ainda não finalizado, mantêm-se a idéia de preto sem alma, ou de cidadão não
civilizado que deve apenas, atender os interesses de seus superiores, pois tem
dentes fortes, força corporal, mas não possui a humanidade de seu avaliador. Se
este processo avançar, o embranquecimento terá, portanto, alcançado o seu
objetivo central, que por sinal, desde há muito, busca tirar do caminho todos
aqueles que não se encaixam no mundo ideal, segundo os valores civilizatórios
europeu.
Mas, é importante lembrar o como e o quanto os
discursos e as relações de poder compõem o nosso cotidiano, condicionam e assim
docificam os corpos dos sujeitos. É um processo, com passos previamente
definidos e objetivo claro, com estratégias organizadas de forma a permitir que
o sujeito questione os fatos, mas não consiga responder e, para isto novamente,
é preciso adestramento, disciplina e vigia, pois a disciplina controla o corpo
do individuo na sua totalidade e isso soma-se à vigilância, a sanção, o
adestramento e o exame. (MONTEIRO, CR; 2016)
Com base na ampla produção científica
disponível, é preciso lembra que, para cada louco, um hospício, com regras, normas,
códigos, vigilância e disciplina; para cada doente, um médico, com remédio
(sossega leão), punição e crítica, ao invés de respeito, acolhimento, escuta
qualificada, atenção e cuidado.E que a gente não se esqueça do capitalismo selvagem
quejá chegou também no mato e,as questões econômicas que permeiam esse
debate.Logo, é preciso vigiar e punir todos aqueles que não se adéquam ao
sistema, que não se permitem docializar, que não querem ser civilizados segundo
o padrão do outro.
É
preciso na sociedade disciplinar, punir aqueles que não comungam da idéia de
sociedade civilizada, por rebeldia, mesmo quando o outro está determinando o
que é bom pra ele, de forma genuína e generosa. Logo, é preciso vigiar e punir
todos aqueles que não adequam-se ao sistema, que não se permitem docializar,
que não querem ser civilizados segundo o padrão que lhe éimposto.É preciso
punir aqueles que não compõem a sociedade civilizada, porque atuam em nome do
Satanás, mesmo quando o outro está determinando o que é bom pra ele, de forma
genuína e generosa.
Mas, e preciso reagir à manutenção
das práticas e do status-quó. Com um universo desta magnitude, é fundamental
uma resposta articulada, construída de fato, por várias mãos, diante do
conjunto de desafios que ameaçam a manutenção das tradições de matrizes
africanas cotidiana e rotineiramente, nos diferentes espaços da sociedade e do
Estado. Para tal, é preciso revistar a história da civilização, questionando os
processos, discursos, as narrativas, os projetos político-ideológicos, que
reúnem, por exemplo, as inúmeras tentativas de cura de gays e os procedimentos
que nos trouxeram ao mundo atual.
Além
disso, é preciso atenção aos exemplos que nos foram ofertados ao longo dessa
mesma história, seja por nossos ancestres, sejam pelos ativistas e demais
lideranças que chegaram a sentar-se na mesa do Estado, ou organizaram suas
comunidades, com diferentes mecanismos e recursos, tendo o preconceito, a
discriminação, o racismo, a xenofobia e as intolerâncias correlatas, como pauta
de uma luta intensa e diária. Avante!
Referencias:
BRASIL. Relatório sobre
Intolerância e Violência Religiosa no Brasil. Presidência da República;
2016.
FOUCAULT, M. Vigiar e
punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
FOUCAULT, M. A
ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola, 1996.
MONTEIRO, C.R. O doce
encontro entre ancestrais e descendentes, segundo o ethos e a práxis.Portal Áfricas;
2016.
MONTEIRO, C. R. O
ambiente hospitalar: a loucura, os corpos dóceis, as relações de poder e os
fatores econômicos na sociedade disciplinar. FMU – Faculdades
Metropolitanas Unidas; 2016.
*Sacerdote do Asé Igbin de Ouro. Contatos: montcelso@yahoo.com.br
Fotos: Roger Cipó - Olhar de um Cipó. Todos os direitos reservados]
A verdade é que passou da hora do povo de santo escolher representantes políticos ligados às religiões de matriz africana para defender seus interesses, sob pena de não termos a quem recorrer.
ResponderExcluirCada mais vez mais é nítido que existe um "projeto de poder" há muito tempo em andamento: um ativismo neopentecostal com intuito de massacrar às religiões de origem africana, oprimindo seus adeptos!
Concordo plenamente com essa sua observação.
ExcluirTenho vivido várias discussões sobre essa questão, especialmente com os mais velhos que estão confusos com o que está acontecendo.