Lembro que a primeira
vez que tive contato com um Erê fiquei curioso pra entender o porque aquela tão alegre
energia temia o Alibã (como eles chamavam os policiais). Hoje, consigo entender
melhor o porquê de tanto pavor. Como não sentir medo de alguém que mata
crianças?
Esse texto é um olhar para os tantos Erês que vivem na mira de extermínio da polícia brasileira. 27 de Setembro celebramos Cosme e Damião, os Erês, Vunjis e a dupla Ibeji, do Candomblé. O meu pedido à essas energias é um só: ajudem nossas crianças a enganarem Iku, porque tem muitos deles que não conseguirão chegar até o terreiro da esquina para comer doce, nos próximos finais de semana.
Esse texto é um olhar para os tantos Erês que vivem na mira de extermínio da polícia brasileira. 27 de Setembro celebramos Cosme e Damião, os Erês, Vunjis e a dupla Ibeji, do Candomblé. O meu pedido à essas energias é um só: ajudem nossas crianças a enganarem Iku, porque tem muitos deles que não conseguirão chegar até o terreiro da esquina para comer doce, nos próximos finais de semana.
Lá se vai o protegido pelos gêmeos, lá se vai Erê pra viver.
É que sua essência é brincar, e a felicidade o faz doce de ser.
Lá se vai Erê que não tem playground, não tem quintal grande
pra o conter. Seu parque é a rua de asfalto esburacado, sua vida se faz verdade
nas ladeiras do morro e seu maracanã é o plano terrão desnivelado, no coração
da quebrada.
- Mas antes de ir pra rua, trate de comer, seu menino!
- Sim senhora, Dasmãe.
E ele come, todo afobado pra não perder tempo de brincar.
Come quase que sem respirar, e ainda de boca cheia, entorna o copo de tang
laranja. De sorriso travesso, limpa boca
no pano de mesa, sem que dasmãe veja. Grita pra tomar a bençã e sai feito
foguete, pela porta da frente.
Dois passos de menino cruzados pelo portão de madeira e o
coração chama Dasmãe para conversar. O
coração é jeitoso e dá uma apertadinha quando quer falar. Entre um tremido gole
d´água e outro, corre uma lágrima no rosto que treme por inteiro. Bem lá no
fundo, quando a mãe de puro amor pedia para Oxum proteger seu menino nas
brincadeiras, ela dizia também que o amava demais. Parece até mentira, mas na
correria do dia a dia, ela que saia cedo pra faxinar e só voltava no fim da
novela das nove, quase nunca tinha tempo pra contar para o menino o quanto era
grande seu amor pela doçura de Erê que só veio ao mundo depois de muita reza
para a Dona das Águas Douradas.
É esse tipo de Amor que vive em nossos lugares. Amores
vistos nas entrelinhas, mas nunca com espaço para gritar em vozes, porque o tempo
é inimigo de quem não nasceu com vida fácil, e precisa ralar muito. Uma vez ou
outra, quando a bateria de erê desligava no sofá da sala que Dasmãe o tomava no
colo e ao acariciar o garoto quase homem, sussurava um Te amo no ouvido do
menino que não ouvia, mas sentia no acolher de um singelo sorriso adormecido.
Do outro lado da vida, lá no pé do asfalto, o calor queimava
os neurônios prensados na boina preta do Alibã. Protegido por toda sua
arrogância e habeas corpus de justiça imperada na ponta de fuzil, transpirava a
obscuridade entorpecida pela obrigação de cumprir ordem. A A Adrenalina em
ânsia, o secava a garganta e ele só sabia salivar féu ao olhar para o alto e
nada enxergava, além de alvos em contraste com a luz do sol.
Ali estava o medo em essência, e o medo covarde subia os
caminhos pelas beiradas. Quem o via, corria, se escondia, pois sabia que ele
nunca foi segurança. E a vida correu...
A vida corria em alegria, sem notar que Alibã subia. O que
Erê queria?
Erê corria para tornar realidade a brincadeira. Descalços e
sem camisa, livre como gostava de ser, Erê corria as vielas para chegar até a
vendinha e comprar de vez a nova bolinha de ping-pong, que há dias esperava
para ter. Ping... Pong... Ping... Pong... Pow! O menino não chegou.
Foi um Pow, sem pong,
sem ping. A doçura pingou de uma vez só no asfalto quente. Pingou como
gota de felicidade agora despedaçada e sem vida. Pow! Explodiu a dor de vez no
coração de Dasmãe que entendera o recado e correu em direção do seu menino que
só era alegria no mundo cão.
Nesse mundo cão onde a bala de fuzil tem direção certa, o
menino protegido pelos gêmeos não conseguiu desviar, porque sua pele negra o
fazia alvo.
Protegido sim por Oxum, por Iemanjá e pelos Gêmeos,
atravessou o mundo brincando, mas antes da hora - E quem sabe a hora certa? Olorun sabe, mas o Alibã acha
que que suas balas são os ponteiro de relógio e acerta quando e quem quiser, no
país onde a impunidade extermina suas vidas mais importantes. O que esperar de
uma nação que institucionalmente assassina suas crianças que só fazem brincar
de ser feliz?
E lá vai Erê, agora acariciado no colo de Oyá, Príncipe como
sempre foi, cortejado por todos os Orixás para se juntar aos seus outros irmãos
e irmãs da patota de Cosme, Damião, Doum, Crispim, e a Ibejada tão doce quanto
o amor de Dasmãe que ficara desamparada no mundo cão, mas que passa a ser
cuidada em todos os dias por seu menino que poucas vezes ouviu seu Te Amo,
mas que a partir de agora, a ouve sem dormir. Ele vai cuidar de sua mãe e vai
brincar de ser criança somente para proteger todas as outras crianças que, dia
após dia, tem trabalho para enganar Iku que habita a alma cruel do Alibã.
[Para Herinaldo Vinicius de Santana, de 11 anos, morto após ser baleado na comunidade Parque Alegria, no Complexo do Caju, nesta quarta-feira (23/09).]
*Foto 1: Roger Cipó - Olhar de um Cipó
*Fotos 2: Frame de uma reportagem sobre o assassinato de Herinaldo
*Foto 3: Amigos de Herinaldo protestam contra a violência policial no Rio de Janeiro.
*Foto 3: Amigos de Herinaldo protestam contra a violência policial no Rio de Janeiro.
Realidade da vida
ResponderExcluirTriste realidade da vida . admiro te Roger Cipó...
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