(Por Roger Cipó)
Quando o ritual ocupa a avenida mais famosa do Brasil em um Ato Político de Cura Social, Contra Invisibilidade e Intolerância Religiosa.
O Candomblé é uma religião de resistência cultural e
social, para a sobrevivência. Grande foi e é sua contribuição para o empoderamento
de importantes lutas e movimentos de fortalecimento das batalhas negras.
Lembremos Luiza Mahin, que nas primeiras décadas do século XIX fez de seu ofício
de quituteira, um canal de articulação, e de seu tabuleiro de doces, distribuía mensagens em árabe, aos irmão que com ela adquiriam quitutes
camuflando escritos com orientações sobre a organização do importante movimento
que ficou marcado na história como a Revolta dos Malês.
Atualmente, a revolta se faz presente nas
ações protagonizadas por terreiros e religiosos organizados contra a opressão
racial e intolerância religiosa. Os tempos insistem em ser difíceis para os adeptos
das religiões de matriz africana que erroneamente foi contabilizado pelo IBGE
como apenas 0,3% da população brasileira. Mais uma estratégia fundamentalista de
manter a fé afrodescendente na invisibilidade. Mas a cura existe!
Sim. A cura existe e vem sendo
compartilhada por pessoas como o Babalorixa Rodney de Oxóssi, que em um
importante ato sacerdotal e político, ultrapassou as barreiras do bairro do
Tremembé, na Zona Norte de São Paulo, onde mantém Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá , e na
companhia de seus filhos de santo, ocupou a avenida mais famosa do Brasil
para um importante ritual, se fazendo respeitar no meio social, que segundo ele é um espaço sagrado para os povos de axé.
O senhor foi às ruas com um ritual que antecede as festas de Olubaje. O
que é esse ritual? Por que fazer nas ruas?
A grande celebração em homenagem a Omolu, mais conhecida
como Olubajé, é precedida por uma série de rituais. Um deles é o Sabejé, que
consiste em sair às ruas com um balaio ou tabuleiro de pipocas e, em nome de
Obaluaiê, pedir contribuições para a realização da festa. Em nossa casa, um mês
antes dessa festa, todas as segundas-feiras rezamos para a "Família da
Palha" e oferecemos banhos de pipocas aos presentes. No decorrer da
semana, filhas e filhos de santo vão às ruas e oferecem um punhado de pipoca em
troca de alguma quantia em dinheiro. Nosso saudoso Pai Pérsio me advertiu certa
vez que o Olubajé só pode ser realizado com dinheiro de esmolas. Uma das
perguntas que fiz a ele na ocasião foi: "Mas Omolu não é um Orixá tão
rico, que mede suas pérolas em cântaros, por que pedir esmolas para fazer sua
festa?" E ele me disse: "esse é um gesto de humildade, meu filho. De
que vale todo dinheiro do mundo quando não se tem saúde." Em Salvador, é
comum ver pessoas descalças cumprindo essa obrigação. Embora haja todo um
preceito interno, levar nossa fé para as ruas (que para nós também é um espaço
sagrado), a meu ver, empresta ao ritual um sentido de coragem e enfrentamento
que dão base ao Candomblé, que é, essencialmente, uma religião de resistência.
Contudo, é preciso lembrar que essa resistência ocorre em sociedade, portanto,
para buscar fortalecimento é preciso se tornar visível. Esse ritual de Obaluaiê
sempre promoveu a visibilidade.
Cumprir esse ritual na Avenida Paulista, a mais importante
do País, foi um ato deliberado. Há anos saímos pelas ruas com nossos balaios de
pipocas, mas sempre fomos pelas imediações do terreiro ou no máximo, como no
ano passado, à Rua 25 de Março. Com tantos episódios de ódio racial e
intolerância religiosa, sobretudo o da menina Kayllane, decidimos fazer desse
ritual um ato político de resistência, por isso escolhemos a Paulista.
Em tempos de Inquisição não mais velada, e violência contra as religiões
negras, sua ação religiosa é um ato político. Como o senhor mede o impacto
dessa iniciativa?
Avaliamos que seja um momento de buscar visibilidade e
respeito, mas também de enfrentar possíveis hostilidades. Enfrentamento faz
parte da nossa luta. Cumprimos o ritual como de costume: nossas roupas brancas,
nossas contas, nossos balaios, mas imprimimos num simples sulfite a frase
"mais amor, menos pedras". Isso deu um outro sentido ao ritual, um
sentido político. Não poderíamos perder essa oportunidade, aliás, o povo do Axé
não pode perder nenhuma oportunidade de transformar seus rituais em atos
políticos. Embora toda resistência seja um ato político, é preciso tornar isso
explícito. Naquele dia, mais do que nos fazer notar, nos fizemos respeitar.
Como se comportavam as pessoas abordadas pelo seu grupo? Qual foi a
experiência mais marcante do dia?
Foi um dia fantástico, com várias situações emblemáticas:
pessoas que prontamente colaboraram, outras que queriam saber de que se
tratava, muita gente que se revelava adepto, muitos querendo tirar fotos. Dois
episódios me marcaram profundamente. No primeiro, uma criança saía de um prédio
e quando nos viu seus olhos brilharam e ela gritou: "Olha, mãe, que
bonito!", mas a mãe mais que depressa a puxou pra longe de nós. No outro,
uma senhora com o filho doente chorou copiosamente ao receber as pipocas e nos
emocionou ao falar da fé que tinha em Obaluaiê e de que aquele encontro conosco
era um sinal de que o filho seria curado. Ficamos muito emocionados.
A ação na Paulista reverberou de maneira positiva nas redes sociais. Compartilhar essas notícias contribuem para tirar a religiosidade negra da invisibilidade social?
As redes sociais atualmente são um canal indispensável e
muito eficaz não só na divulgação, mas principalmente na repercussão de atos
políticos como esse. Nossa ação foi muito simples: ao tomar a mais importante
avenida do Brasil, fizemos de uma obrigação ritual um ato de resistência, de
protesto, de fé e coragem. Nada disso faria sentido sem a postagem no Facebook,
que além de tornar o ato público, fez com que reverberasse de forma muito
positiva, estimulando outros adeptos e fazendo com que nossa imagem circulasse
e fosse vista por milhares de pessoas, que não só curtiram, como comentaram e
compartilharam. Como disse anteriormente, foi um ato deliberado, que se
completou com a postagem nas redes sociais e com toda repercussão que
alcançamos.
Vale dizer que causamos uma grande movimentação na Av. Paulista, inclusive fomos fotografados e filmados por profissionais que lá estavam trabalhando em outras coisas, mas, ao nos verem, fizeram questão de registrar nossa ação. Éramos apenas seis pessoas. Imaginem um grupo maior? Então, minha intenção é organizar nosso terreiro e no próximo ano levar muito mais gente. Mais do que existir, é preciso resistir. Como ensinaram nossos ancestrais: "nossa luta não tem fim!". Axé!
[Créditos de Imagens: Foto I: Baba Rodney de Oxossi em As Águas de São Paulo 2013 - Roger Cipó © Olhar de um Cipó All rights reserved - Fotos II, III e IV: Acervo pessoal do Babalorixá.]
Roger Cipó, sem palavras as fotos e a reportagem, tive o imenso prazer de conhecer Pai Rodney de Oxossi, e simplesmente fiquei maravilhada pela atitude e a coragem de ir em plena Av Paulista e ver que além da Religião ele e uma pessoa realmente iluminada...parabéns!!!!!
ResponderExcluirComo não se emocionar com essa beleza toda. Que Omolu seja caminho de saúde!
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