1 de agosto de 2017

Campanha reivindica patrimônio sagrado aprisionado no Museu da Polícia Civil





Na foto: Mãe Luisinha de Nanã, que recente foi recentemente alvo de severos episódios de intolerância religiosa, quando sua casa religiosa, foi removida da Vila Autódromo por conta da preparação da cidade para receber as Olimpíadas de 2016. Foto: Acervo da Campanha

Liberte Nosso Sagrado


Durante o período da Primeira República (1889-1930), uma prática comum da polícia era perseguir os cultos das religiões de matriz africana, invadindo terreiros e   apreendendo objetos sagrados. Apesar da Constituição de 1891 garantir a liberdade de crença e culto, o Código Penal de 1890 criminalizava essas casas sagradas tipificando as manifestações como curandeirismo, baixo espiritismo e exercício ilegal da medicina. 


Numa clara manifestação de racismo religioso promovido pelo Estado, os terreiros eram violados, os religiosos presos, e seus objetos sacros apreendidos. Esse Código Penal estabelecia, portanto, uma legislação que legitimava o racismo religioso, representando um instrumento que faz parte do racismo estrutural brasileiro.  Não podemos esquecer que   esse   mesmo Código  também reprimia a capoeira e o samba, ou seja, criminalizava quase tudo que   era   oriundo   da   cultura   afro-brasileira. A partir da compreensão que os objetos sagrados foram apreendidos por uma lei ilegítima e racista, é preciso reconhecer que ocorreu   uma   injustiça   histórica   com as religiões   de   matriz   africana.   O   Estado deve   reconhecer   os   crimes cometidos durante todos esses anos em que as religiões afro-brasileiras foram perseguidas e os anos que estes objetos sagrados estão presos. 


Estas peças estão atualmente aprisionadas no Museu da Polícia Civil do Estado do Rio   de   Janeiro. As peças foram denominadas “Coleção Magia Negra” e, antes de serem encaminhadas para a reserva técnica na década de 1990, ficavam expostas junto   a   bandeiras nazistas e armas, numa clara profanação e desrespeito ao sagrado afro-brasileiro.


Em 2010, o Museu da Polícia fechou as portas, pois necessitava de obras estruturais e verba para que pudesse ser reinaugurado. Ou seja, além da falta de acesso, ainda nos deparamos com a inadequada condição de conservação dos objetos sagrados, que possuem importância ímpar para o melhor conhecimento da história de nosso país.


Por que precisamos libertar as peças sagradas? O fato dessas peças estarem sob a posse da Polícia Civil há mais 100 anos revela que pouco avançamos em relação ao respeito à pluralidade e diversidade religiosa, em nosso país. Mais do que necessária, a libertação   do acervo sagrado é urgente! Atualmente, a coleção encontra-se em caixas e dentro de uma sala não climatizada. Além disso, não há informações sobre o seu real estado de conservação. Estudiosos, cineastas e o povo de terreiro não conseguem acessar o acervo.






 Breve História da coleção “Magia negra”


            Desde o período colonial (1500-1822) as religiões praticadas pelos indivíduos trazidos a força do continente africano como escravos foram perseguidas, criminalizadas e vitimadas pelo racismo religioso. Mesmo com a vigilância e o controle dos senhores e dos capatazes, os escravos conseguiram cultuar seus orixás, seus deuses e suas religiões. Após a independência do Brasil em 1822, esse cenário não mudou e as religiões de origem africana permaneceram sendo perseguidas e combatidas pelo Império, que tinha como religião oficial o catolicismo. 


            Em 1889, o Brasil deixou de ser uma Monarquia e tornou-se uma República e, apesar de a Constituição de 1891 estabelecer o Estado laico, as religiões afro-brasileiras continuaram sendo criminalizadas. No Código Penal de 1890, os artigos 156, 157 e 158  proibiam: “o curandeirismo, a prática ilegal de medicina, o baixo espiritismo, a magia e seus sortilégios, bem como usar talismãs e inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis”. Esse artigo criminalizava as práticas religiosas de origem africana e legitimava que as forças policiais cometessem abusos e atrocidades contra os adeptos dessas religiões e seus locais de culto.


            O resultado foi que, durante a Primeira República (1889-1930) e a Era Vargas (1930-1945), a polícia perseguiu e invadiu centenas de centros de umbanda e terreiros de candomblé não só na cidade do Rio de Janeiro, mas em todo o país. Essas violações ocorreram especialmente a partir das denúncias recebidas pela polícia.  Os yalorixás, babalorixás e religiosos eram presos e incriminados pelos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal. Eram instaurados processos em que a polícia buscava comprovar que o acusado ou acusada era um "feiticeiro perigoso" e que fazia "feitiços maléficos".


Foto: Ian Cheibub
 As batidas policiais nos terreiros e centros não só levavam presos os religiosos como também apreendiam os objetos sagrados utilizados nos cultos. Durante esse período eram apreendidos objetos como vestimentas, velas, estatuetas, penachos, anéis, talismãs, atabaques, representações de caboclos e orixás, imagens, assentamentos, pembas, entre outros. Ao longo de 40 anos, mais de 200 peças foram apreendidas e armazenados no 1° Departamento de Polícia do Rio de Janeiro. Em 1938, essa coleção foi tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.  Foi o primeiro tombamento etnográfico, reconhecendo o valor artístico, religioso e histórico destes objetos sagrados.


            Em 1945, o acervo afro religioso foi transferido para o Museu de Criminologia, posteriormente chamado de Museu da Polícia. O acervo foi nomeado de maneira pejorativa e discriminatória como “Coleção de Magia Negra”. Permaneceu durante anos sendo exposta aos visitantes ao lado de outros objetos apreendidos como armas, falsificações, bandeiras nazistas e integralistas, dentre outros objetos associados ao crime. É importante ressaltar que os objetos sagrados afro-brasileiros eram expostos de maneira desrespeitosa, uma vez que eram considerados "amaldiçoados" e possuidores de "energias maléficas". Inclusive os funcionários do Museu alertavam os visitantes para o “perigo” representado por tais objetos.


            O prédio onde funcionou e funciona hoje o chamado Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro também foi durante os anos da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Neste local, centenas de militantes foram presos e torturados nos "anos de chumbo". Foi nesse local que Olga Benário ficou presa antes de ser deportada para a Alemanha, onde seria assassinada pelo regime nazista de Adolf Hitler. Pelo valor sacro e religioso que essas peças têm para milhões de brasileiros as mesmas não podem permanecer em um prédio que carrega uma memória tão negativa e que foi centro de inúmeras ações violadoras dos direitos humanos. 


            Em razão de um incêndio que atingiu o edifício do Museu da Polícia em 1989, muitos desses objetos sagrados aprisionados foram danificados, enquanto outros desapareceram. Desde 1999, a então chamada “Coleção de Magia Negra” deixou de ser exposta ao público. A direção do Museu não tem explicações para tal decisão, o que nos leva a uma interpretação de que tal decisão foi tomada provavelmente por motivos de racismo religioso. Atualmente, o acervo encontra-se em reserva técnica e, apesar de pouca coisa ter mudado, essa breve história atesta como as religiões afro-brasileiras e seus adeptos foram vítimas do racismo religioso estatal durante a primeira metade do século XX. O fato de há 100 anos essas peças estarem sob a posse da Polícia revela que não avançamos na garantia do direito  à  pluralidade religiosa. Trata-se de uma ameaça a liberdade de culto.




Sacerdotes e Sacerdotisas de terreiros do Rio de Janeiro apoiam a campanha. Foto feira durante as homenagend do Prêmio Iya Nitinha de Osun. Foto: Paula Jardim Duarte




Porque precisamos libertar o sagrado afro-brasileiro. 


A apreensão dessa coleção é um terrível crime contra a fé afro-brasileira. Mais do que objetos de culto sob o domínio do Estado racista, trata-se de representações vivas de divindades ancestrais africanas e das forças da natureza que são cultuadas. Nos ritos, os colares se tornam sagrados, os atabaques, após sacralizados, se transformam verdadeiras divindades, capazes de trazer as deusas e deuses, para a África que se reconstrói nos espaços do terreiros. As peças são todas sagradas por excelência. São imagens vivas, são corpos negros, e assim como a maioria dos corpos negros afro-brasileiros, foram e ainda são violentados e estão encarcerados no Museu da Polícia Civil pelo processo racista e eugenista que segue em curso desde a invasão das terras brasileiras pelos europeus. 

  Por todo esse histórico, se faz urgente que o Estado, para além do reconhecimento das violações ao longo dos séculos, estabeleça uma reparação histórica aos praticantes das religiões afro brasileiras. Desta maneira, cabe ao Estado algumas ações no que tange à reparação histórica dessas religiões que foram violentadas, criminalizadas e perseguidas pelos órgãos estatais. O primeiro passo para reparação histórica é a libertação do acervo sacro afro-religioso que se encontra no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O segundo passo, é a criação de um Museu das Religiões de Matriz Africana que abrigue este e outros acervos, que exalte a história, a liturgia, as práticas, os objetos das religiões afro-brasileiras, e ao mesmo tempo que aborde a intolerância e o racismo religioso na história do Brasil. Da mesma maneira que as peças religiosas católicas estão no Museu de Arte Sacra do Rio de Janeiro, objetos sagrados dos judaicos encontram-se no Museu Judaico do Rio, este acervo afro religioso deve estar em um Museu que exalte e respeite o valor religioso, histórico e artístico dessas peças. 


Foto: Paula Jardim Duarte


Ações da campanha Liberte Nosso Sagrado


A articulação em torno da campanha Liberte Nosso Sagrado foi iniciada em março de 2017 a partir do contato com lideranças religiosas das diferentes religiões, pesquisadores ligados a universidade, representantes de organizações da sociedade civil. Uma primeira reunião de apresentação da campanha foi realizada a partir da iniciativa do Mandato Coletivo do Deputado Estadual Flávio Serafini (Psol), ocasião em que foram discutidos detalhes sobre como a campanha seria lançada. Ficou decidido que algumas ações seriam realizadas. Está sendo organizada uma representação para o Ministério Público que contará com a adesão de terreiros de candomblé e umbanda, organizações da sociedade civil e pesquisadores que se dedicaram ao tema nos últimos anos. Criamos uma página no facebook que está sendo atualizada diariamente com informações sobre atos públicos e através da qual todos nós podemos manifestar o nosso apoio com a publicação de uma foto com o cartaz da campanha com a #LiberteNossoSagrado.
 Em paralelo a essas ações, estão sendo realizadas reuniões com representantes de museus e instituições que possam receber essa coleção, pois o grande desafio é que ao longo desses anos não houve nenhum esforço de pesquisa que buscasse identificar o contexto em que as imagens foram apreendidas e/ou o terreiro de origem de cada peça. Também está sendo produzido pela Quiprocó Filmes o documentário “Nosso Sagrado”, em que será abordado o aprisionamento do acervo afro religioso no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde o início do século XX, através de entrevistas com parlamentares, pesquisadores, lideranças religiosas, museólogos e militantes da liberdade religiosa. As filmagens estão acontecendo e a previsão de lançamento é para o segundo semestre de 2017.



APOIE ESSA CAMPANHA. Imprima o cartaz, faça sua foto e publique com a tag #LiberteNossoSagrado




Fernando Sousa –Diretor da Quiprocó Filmes e pesquisador associado ao Instituto de Estudos da Religião (ISER). Dirigiu com Tais Capelini e Alexandre Borges o documentário “Intolerâncias da Fé” [Canal Futura], além de assinar o roteiro e a produção do filme. Junto com a Stela Guedes Caputo, dirigiu o vídeo “Axé com Freixo”, realizado no âmbito da candidatura de Marcelo Freixo para a prefeitura do Rio de Janeiro. É um dos colaboradores da campanha Liberte Nosso Sagrado e é um dos diretores do documentário “Nosso Sagrado”.


Gabriel Barbosa – Diretor da Quiprocó Filmes. Cursa o doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). É pesquisador associado ao Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ). É um dos colaboradores da campanha Liberte Nosso Sagrado e é um dos diretores do documentário “Nosso Sagrado”.


Jorge Santana – Coordenador da campanha Liberte Nosso Sagrado. É professor de História e Mestre em Ciências Sociais. Faz parte da equipe da campanha Liberte Nosso Sagrado e da equipe de produção e direção do documentário “Nosso Sagrado”.


Roger Cipó - Fotógrafo pela Escola São Paulo. Sua pesquisa de imagem etnográfica estuda as experiências de fé e relação de adeptos das religiões de matriz africana com os territórios sagrados e suas comunidades. É gestor da Olhar de um Cipó, plataforma digital contemplada com o Prêmio Almerinda Farias Gama para Comunicadores Negros (2016). Dentre seus trabalhos publicados e expostos estão as séries "Oju: Quando olhares contam histórias" (2013), "Oju Mimo" (2015), Gravidez Sagrada (2016), "A beleza da Identidade" - ensaio para o a publicação Ocupação Abdias do Nascimento (2016), e compôs o livro "Herança Africana no Rio de Janeiro", sob coordenação de Milton Guran. Seu trabalho mais recente é a exposição fotográfica "AFÉTO", que segue em cartaz até 2 de setembro de 2017, na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea, dentro da programação do FotoRio - Festival Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro.