17 de outubro de 2017

As religiões de matriz africana, o Estado e a sociedade

As religiões de matriz africana, o Estado e a sociedade: os desafios contemporâneos doethus e na práxis.


Celso Ricardo Monteiro para Olhar de um Cipó



          O presente artigo é um resumo, fruto da Conferência de abertura sobre os avanços e desafios das religiões de matriz africana na contemporaneidade, por mim na V Plenária do Fórum Regional de Promoção da Igualdade Racial de Sorocaba, em Setembro de 2017, motivo que muito orgulha. O re-encontro com os velhos amigos, as novas amizades e avaliação da conjuntura, foram de fato, motivos de muita emoção em tal oportunidade.

          No momento em que acontece o FORPIR, a sociedade brasileira assiste “calada” aos ataques de que foram vítimas os Terreiros do Rio de Janeiro, mais uma vez, agora com um requinte de crueldade, pouco conhecido por parte de todos nós, o que envolve um sujeito, que eu classificaria como bandido evangélico, cuja missão é “limpar o morro” da força do Satanás, em nome de Deus. Falo com base nos vídeos amplamente difundidos por meio das diversas redes sociais ao longo de Setembro de 2017. Bem, á bem da verdade, várias coisas tem acontecido nesse país, em nome de Deus, entre elas, a possível morte do meliante, como que em um ato de vingança, cuja autoria também se deu de forma bem singular. Entre os casos que nós conhecemos, depois do ataque equivalente ao Terreiro de Bagan em Brasília, liderado por Mãe Baiana, soma-se o ocorrido com a Iyalorixá que teve que quebrar seu quarto sagrado, com as próprias mãos e o Pai de Santo usando camiseta com a imagem de Cristo, que de igual forma destruiu os seus fios de contas, além dos recentes ataques aos Terreiros de Carapicuíba e Jundiaí, no Estado de São Paulo.  Isso tudo, logo depois do falecimento de Mãe Beata e Ogan Marmo. 

          Para a honrosa conferência, partimos do princípio de que existe no Brasil uma intensa encruzilhada entre a laicidade e a intolerância religiosa, cuja profundidade só nos surpreende. Vejamos os pressupostos elencados nesse certame:

1.       A Constituinte de 1.998 nos garante o direito à liberdade de fé e de crença no Brasil, mas por vezes, a teoria se contradiz á prática, no que se refere à diversidade de sujeitos, nos informando que a sociedade tem um modelo de homem a ser seguido, como nos conta a história da civilização humana;
2.       Alaicidade é uma característica do Estado democrático e de direito, porém, os casos de violência promovidos por violência religiosa são uma crescente na nação brasileira;
3.       Para efeito de organização do argumento a ser usado em defesa das comunidades tradicionais de Terreiro, a diferença existente entre nós, sereshumanos que pagamos impostos (também de forma desigual), édo campo jurídico apenas, mas, todo e qualquer cidadão deve gozar dos mesmos direitos e deveres perante o Estado;
4.       Essa diversidade de sujeitos de que tratamos cotidianamente, tem sido objeto de estudo, texto de discurso político, justificativa de projeto, mas desconsiderada na prática. Vide o impacto da intolerância religiosa na sala de aula;
5.       A tal laicidade que falamos tanto, refere-se conceitualmente à neutralidade necessária para governar, diante das especificidades das organizações religiosas existentes no mesmo território, considerando que, para muitos, essa ampla diversidade religiosa, divide espaço com ampla harmonia. O direito ao aborto é um exemplo brilhante disto;

Ao estudar os contextos em que estão os Terreiros do país, faço isso ao menos há duas décadas em média, provocado por Piercucci, avalio que as vulnerabilidades só aumentam, uma vez que, além de estarem estabelecidos sempre nas periferias do país, onde estão os piores índices de desenvolvimento humano, acesso à saúde e à educação e outros bens, recursos e serviços, vão lidar com o impacto da intolerância religiosa e do racismo, nesses mesmos territórios e na relação com o aparato do Estado.

A realidade dos Terreiros, segundo os bancos de dados oficiais, com ampla invisibilidade, inclusive, além das pesquisas científicas, demonstra que a intolerância religiosa é crescente em função da intensa busca pela garantia de um Deus único, salvador, capaz de mover pedras e montanhas, o que configura um projeto ideológico, de poder, cujo objetivo gira em torno dos interesses políticos de um grupo, em detrimento de outro. Ora, é em nome de Deus que esse fenômeno social acontece bem nos nossos quintais. É uma luta diária em torno da garantia de direitos constitucionais e em meio à singularidade das pessoas, além do direito à propriedade.

O imaginário popular indica-nos certo ódio em meio a uma desigualdade acirrada que surge em meio às diferenças étnicas e ideológicas existentes nesse universo, que reúne pretos, pardos, amarelos, brancos e índios, além das diferentes classes sociais que estes compõem. É fruto doracismo, imputado a população negra ao longo da história, logo, apenas uma fatia do processo que pretende dizimar a população negra e conta, entre outras, com o processo de branqueamento e o capitalismo para isso.  Mas,

A ancestralidade é um valor central, que serve de base para o Terreiro, mas, mais do que isso, é o referencial de toda e qualquer pessoa. Aliada à descendência, a voz dos ancestrais se dá por meio dos diferentes caminhos da vida, seja no âmbito espiritual da consulta e das oferendas, seja cotidiana e rotineiramente, da porta de nossas casas pra fora, pra o mundo, na relação com a sociedade ampliada. Os entraves de uma vida tranqüila também são parte desse encontro. (MONTEIRO, C.R; 2016)


Apesar das inúmeras políticas públicas implantadas no país dos últimos anos (o cadastro de diferentes sacerdotes junto ao INSS é uma delas), o que nos parece uma contrariedade, o Estado democrático está repleto dessas pegadinhas. Assim, os desafios presentes na relação entre o Estado, a religião e a sociedade vão indicando também, a presença inconstitucional do Estado (formado por gente, que representa diferentes visões de mundo e interesses) em universos que são exclusivamente do campo da fé e crença.  Esse é outro fenômeno que não pode ser ignorado aliado ao fato de que, nesse mesmo cenário, os Terreiros perderam mais uma importante batalha: o STF entendeu que a Escola pública, universal e de qualidade, que tanto sonhamos, em meio á essas inúmeras cenas de intolerância, deve ofertar ensino religioso – confessional.  Já, o contrário como todos sabem, é fato consumado. E, o amplo envolvimento, a participação e convite a certas organizações religiosas, para tomada de decisões importantes, sempre em detrimento de outras, além da benção às determinadas instituições para determinados atos, são uma constante no Brasil republicano.

Á essa análise soma-se os inúmeros casos de vilipêndio que acontecem diariamente no país, sem repercussão, tampouco resposta por parte das organizações governamentais, que se omitem ou não possuem mecanismos possíveis de contenção dos casos, ou punição dos mesmos, muito embora o marco legal seja claro e objetivo. Os limites dessa relação obscena deveriam ser pauta dos grandes debates, creio eu. Ao estudar o “Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil” do governo federal, publicado em 2016, tem-se que o documento (cuja publicação de dados similares inexiste no Estado de São Paulo, apesar da criação da DECRADI), foi organizado com base no levantamento de dados e informações em órgãos públicos que aponta que a intolerância religiosa e os episódios de violência possuem grande invisibilidade, mas os casos giram em torno do uso de categorias específicas, como macumbeiro, demônio, diabo.

         Com a violência gerada por ódio em meio à intolerância, segundo o texto,“organiza-se assim um sistema acusatório, baseado na maioria das vezes em emoções e em um plano inconsciente de compreensão, que demarca fronteiras no espaço social.” (BRASIL, 2016, p.59).As tais fronteiras conhecemos bem, visto que a cada encontro casual, na saída do culto ou na volta do Terreiro, há sempre uma pedrada esperando alguém, como no caso da criança agredida há alguns anos atrás, também no Rio de Janeiro eque parece já ter caído no esquecimento. Note que nesse caso, em particular, o autor da ofensa não foi o tráfico.

As violências por motivação religiosa nas denuncias recebidas por Ouvidorias entre 2011 – 2015, diz o documento, são:66% de ordem psicológica; 09% de ordem moral; 07% de ordem institucional e 03% por negligência;87% das denuncias recebidas por Ouvidorias são de danos psicológicos e 07% de ordem física;36% das violações dá-se em casa, 11% na rua e 2% no universo da saúde pública; as vítimas em sua maioria são adultas, mas as ocorrências também reúnem crianças e idosos.



Entre as vítimas, 47% declaram-se de pardas;17% são pretas; 51% das ocorrências são contra pessoas do sexo masculino e a maioria dos casos refere-se a vitimas pertencentes a religiões de matriz africana, com um total de 27%,contra 35% sem informação declarada, 16% de religião evangélica e7% de religião espírita.
Entre os 84 agressores categorizados, 17% eram de religião evangélica;52% eram mulheres; 81 % eram adultos; 53% eram brancos; e73% não tinham informação sobre religião;
Ainda sobre os agressores, o estudo demonstrou que27% eram vizinhos, 23% eram família e12% eram gestores.

O enfrentamento à violência que acontece em diferentes níveis implica em avaliar o como as práticas de intolerância ocorrem no cotidiano da sociedade e, elaborar respostas que atendam as necessidades básicas dos seguidores de religiões afro-brasileiras, para assim, garantir efetivamente o direito ao livre exercício da religião deveria ser uma estratégia para garantia da laicidade. Mas como sabemos isso não ocorre.Os desafios são inúmeros: a recente Lei do Abate e ação civil pública, em que o objeto é o sacrifício de animais nas comunidades de Terreiro, ignorando, o uso cultural do abate, em outros espaços e instituições, além da histórica atuação da Igreja Universal do Reino de Deus e as demais Igrejas neopetencostais, via canais abertos de TV, financiados pela União, muito embora o povo de santo tenha se manifestado junto ao STF e a Igreja, condenada a ofertar direito de resposta, compõem esse cenário.

          Além disso, se existem avanços políticos na sociedade, é fundamental lembrar que esses não alcançam quem mais precisa deles e nesse universo, existe uma densa quantidade de pessoas declaradamente negras, que compõem os Terreiros. É, portanto, a transformação da sociedade e dos indivíduos,para além da Escola e da sala de aula, um dos principais objetivos que se deve seguir, visto que, em se tratando de políticas públicas, existe uma lacuna profunda entre as tais conquistas significativas e, a ampla lista de desafios a serem enfrentados. Essa transformaçãodeve seguir com vistas às possibilidades de respostas coletivas, que vão da organização da sociedade á construção de um Estado realmente livre de preconceito e discriminação. Aqui, mais uma vez, está em pauta, o direito á propriedade, mas me refiro, à propriedade da vida e da liberdade do outro e, ao que tudo indica o opositor não está brincando.

Esta reorganização da sociedade de que tratamos aqui, dá-se, porém, com a perspectiva de mudanças impactantes, capazes de envolver a todos, em pé de igualdade, em todo o ciclo de vida, individual e coletiva, nas diferentes esferas da vida privada.
O famoso Tribunal de Valladolid (Espanha de 1.550), que ainda não acabou, demonstra, porém, que as divergências são da natureza humana, em busca de poder sobre o outro, razão pela qual é preciso adestrar e disciplinar os indivíduos, como quer Foucault,civilizando-os e tornando-os aceitáveis, a partir da avaliação etnocêntrica do que é o mundo melhor para todos. Com um tribunal histórico, ainda não finalizado, mantêm-se a idéia de preto sem alma, ou de cidadão não civilizado que deve apenas, atender os interesses de seus superiores, pois tem dentes fortes, força corporal, mas não possui a humanidade de seu avaliador. Se este processo avançar, o embranquecimento terá, portanto, alcançado o seu objetivo central, que por sinal, desde há muito, busca tirar do caminho todos aqueles que não se encaixam no mundo ideal, segundo os valores civilizatórios europeu.

Mas, é importante lembrar o como e o quanto os discursos e as relações de poder compõem o nosso cotidiano, condicionam e assim docificam os corpos dos sujeitos. É um processo, com passos previamente definidos e objetivo claro, com estratégias organizadas de forma a permitir que o sujeito questione os fatos, mas não consiga responder e, para isto novamente, é preciso adestramento, disciplina e vigia, pois a disciplina controla o corpo do individuo na sua totalidade e isso soma-se à vigilância, a sanção, o adestramento e o exame. (MONTEIRO, CR; 2016)



          Com base na ampla produção científica disponível, é preciso lembra que, para cada louco, um hospício, com regras, normas, códigos, vigilância e disciplina; para cada doente, um médico, com remédio (sossega leão), punição e crítica, ao invés de respeito, acolhimento, escuta qualificada, atenção e cuidado.E que a gente não se esqueça do capitalismo selvagem quejá chegou também no mato e,as questões econômicas que permeiam esse debate.Logo, é preciso vigiar e punir todos aqueles que não se adéquam ao sistema, que não se permitem docializar, que não querem ser civilizados segundo o padrão do outro.

É preciso na sociedade disciplinar, punir aqueles que não comungam da idéia de sociedade civilizada, por rebeldia, mesmo quando o outro está determinando o que é bom pra ele, de forma genuína e generosa. Logo, é preciso vigiar e punir todos aqueles que não adequam-se ao sistema, que não se permitem docializar, que não querem ser civilizados segundo o padrão que lhe éimposto.É preciso punir aqueles que não compõem a sociedade civilizada, porque atuam em nome do Satanás, mesmo quando o outro está determinando o que é bom pra ele, de forma genuína e generosa.

          Mas, e preciso reagir à manutenção das práticas e do status-quó. Com um universo desta magnitude, é fundamental uma resposta articulada, construída de fato, por várias mãos, diante do conjunto de desafios que ameaçam a manutenção das tradições de matrizes africanas cotidiana e rotineiramente, nos diferentes espaços da sociedade e do Estado. Para tal, é preciso revistar a história da civilização, questionando os processos, discursos, as narrativas, os projetos político-ideológicos, que reúnem, por exemplo, as inúmeras tentativas de cura de gays e os procedimentos que nos trouxeram ao mundo atual.

Além disso, é preciso atenção aos exemplos que nos foram ofertados ao longo dessa mesma história, seja por nossos ancestres, sejam pelos ativistas e demais lideranças que chegaram a sentar-se na mesa do Estado, ou organizaram suas comunidades, com diferentes mecanismos e recursos, tendo o preconceito, a discriminação, o racismo, a xenofobia e as intolerâncias correlatas, como pauta de uma luta intensa e diária. Avante!

Referencias:
BRASIL. Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil. Presidência da República; 2016.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola, 1996.
MONTEIRO, C.R. O doce encontro entre ancestrais e descendentes, segundo o ethos e a práxis.Portal Áfricas; 2016.
MONTEIRO, C. R. O ambiente hospitalar: a loucura, os corpos dóceis, as relações de poder e os fatores econômicos na sociedade disciplinar. FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas; 2016.

*Sacerdote do Asé Igbin de Ouro. Contatos:  montcelso@yahoo.com.br

Fotos: Roger Cipó - Olhar de um Cipó. Todos os direitos reservados]

1 de agosto de 2017

Campanha reivindica patrimônio sagrado aprisionado no Museu da Polícia Civil





Na foto: Mãe Luisinha de Nanã, que recente foi recentemente alvo de severos episódios de intolerância religiosa, quando sua casa religiosa, foi removida da Vila Autódromo por conta da preparação da cidade para receber as Olimpíadas de 2016. Foto: Acervo da Campanha

Liberte Nosso Sagrado


Durante o período da Primeira República (1889-1930), uma prática comum da polícia era perseguir os cultos das religiões de matriz africana, invadindo terreiros e   apreendendo objetos sagrados. Apesar da Constituição de 1891 garantir a liberdade de crença e culto, o Código Penal de 1890 criminalizava essas casas sagradas tipificando as manifestações como curandeirismo, baixo espiritismo e exercício ilegal da medicina. 


Numa clara manifestação de racismo religioso promovido pelo Estado, os terreiros eram violados, os religiosos presos, e seus objetos sacros apreendidos. Esse Código Penal estabelecia, portanto, uma legislação que legitimava o racismo religioso, representando um instrumento que faz parte do racismo estrutural brasileiro.  Não podemos esquecer que   esse   mesmo Código  também reprimia a capoeira e o samba, ou seja, criminalizava quase tudo que   era   oriundo   da   cultura   afro-brasileira. A partir da compreensão que os objetos sagrados foram apreendidos por uma lei ilegítima e racista, é preciso reconhecer que ocorreu   uma   injustiça   histórica   com as religiões   de   matriz   africana.   O   Estado deve   reconhecer   os   crimes cometidos durante todos esses anos em que as religiões afro-brasileiras foram perseguidas e os anos que estes objetos sagrados estão presos. 


Estas peças estão atualmente aprisionadas no Museu da Polícia Civil do Estado do Rio   de   Janeiro. As peças foram denominadas “Coleção Magia Negra” e, antes de serem encaminhadas para a reserva técnica na década de 1990, ficavam expostas junto   a   bandeiras nazistas e armas, numa clara profanação e desrespeito ao sagrado afro-brasileiro.


Em 2010, o Museu da Polícia fechou as portas, pois necessitava de obras estruturais e verba para que pudesse ser reinaugurado. Ou seja, além da falta de acesso, ainda nos deparamos com a inadequada condição de conservação dos objetos sagrados, que possuem importância ímpar para o melhor conhecimento da história de nosso país.


Por que precisamos libertar as peças sagradas? O fato dessas peças estarem sob a posse da Polícia Civil há mais 100 anos revela que pouco avançamos em relação ao respeito à pluralidade e diversidade religiosa, em nosso país. Mais do que necessária, a libertação   do acervo sagrado é urgente! Atualmente, a coleção encontra-se em caixas e dentro de uma sala não climatizada. Além disso, não há informações sobre o seu real estado de conservação. Estudiosos, cineastas e o povo de terreiro não conseguem acessar o acervo.






 Breve História da coleção “Magia negra”


            Desde o período colonial (1500-1822) as religiões praticadas pelos indivíduos trazidos a força do continente africano como escravos foram perseguidas, criminalizadas e vitimadas pelo racismo religioso. Mesmo com a vigilância e o controle dos senhores e dos capatazes, os escravos conseguiram cultuar seus orixás, seus deuses e suas religiões. Após a independência do Brasil em 1822, esse cenário não mudou e as religiões de origem africana permaneceram sendo perseguidas e combatidas pelo Império, que tinha como religião oficial o catolicismo. 


            Em 1889, o Brasil deixou de ser uma Monarquia e tornou-se uma República e, apesar de a Constituição de 1891 estabelecer o Estado laico, as religiões afro-brasileiras continuaram sendo criminalizadas. No Código Penal de 1890, os artigos 156, 157 e 158  proibiam: “o curandeirismo, a prática ilegal de medicina, o baixo espiritismo, a magia e seus sortilégios, bem como usar talismãs e inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis”. Esse artigo criminalizava as práticas religiosas de origem africana e legitimava que as forças policiais cometessem abusos e atrocidades contra os adeptos dessas religiões e seus locais de culto.


            O resultado foi que, durante a Primeira República (1889-1930) e a Era Vargas (1930-1945), a polícia perseguiu e invadiu centenas de centros de umbanda e terreiros de candomblé não só na cidade do Rio de Janeiro, mas em todo o país. Essas violações ocorreram especialmente a partir das denúncias recebidas pela polícia.  Os yalorixás, babalorixás e religiosos eram presos e incriminados pelos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal. Eram instaurados processos em que a polícia buscava comprovar que o acusado ou acusada era um "feiticeiro perigoso" e que fazia "feitiços maléficos".


Foto: Ian Cheibub
 As batidas policiais nos terreiros e centros não só levavam presos os religiosos como também apreendiam os objetos sagrados utilizados nos cultos. Durante esse período eram apreendidos objetos como vestimentas, velas, estatuetas, penachos, anéis, talismãs, atabaques, representações de caboclos e orixás, imagens, assentamentos, pembas, entre outros. Ao longo de 40 anos, mais de 200 peças foram apreendidas e armazenados no 1° Departamento de Polícia do Rio de Janeiro. Em 1938, essa coleção foi tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.  Foi o primeiro tombamento etnográfico, reconhecendo o valor artístico, religioso e histórico destes objetos sagrados.


            Em 1945, o acervo afro religioso foi transferido para o Museu de Criminologia, posteriormente chamado de Museu da Polícia. O acervo foi nomeado de maneira pejorativa e discriminatória como “Coleção de Magia Negra”. Permaneceu durante anos sendo exposta aos visitantes ao lado de outros objetos apreendidos como armas, falsificações, bandeiras nazistas e integralistas, dentre outros objetos associados ao crime. É importante ressaltar que os objetos sagrados afro-brasileiros eram expostos de maneira desrespeitosa, uma vez que eram considerados "amaldiçoados" e possuidores de "energias maléficas". Inclusive os funcionários do Museu alertavam os visitantes para o “perigo” representado por tais objetos.


            O prédio onde funcionou e funciona hoje o chamado Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro também foi durante os anos da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Neste local, centenas de militantes foram presos e torturados nos "anos de chumbo". Foi nesse local que Olga Benário ficou presa antes de ser deportada para a Alemanha, onde seria assassinada pelo regime nazista de Adolf Hitler. Pelo valor sacro e religioso que essas peças têm para milhões de brasileiros as mesmas não podem permanecer em um prédio que carrega uma memória tão negativa e que foi centro de inúmeras ações violadoras dos direitos humanos. 


            Em razão de um incêndio que atingiu o edifício do Museu da Polícia em 1989, muitos desses objetos sagrados aprisionados foram danificados, enquanto outros desapareceram. Desde 1999, a então chamada “Coleção de Magia Negra” deixou de ser exposta ao público. A direção do Museu não tem explicações para tal decisão, o que nos leva a uma interpretação de que tal decisão foi tomada provavelmente por motivos de racismo religioso. Atualmente, o acervo encontra-se em reserva técnica e, apesar de pouca coisa ter mudado, essa breve história atesta como as religiões afro-brasileiras e seus adeptos foram vítimas do racismo religioso estatal durante a primeira metade do século XX. O fato de há 100 anos essas peças estarem sob a posse da Polícia revela que não avançamos na garantia do direito  à  pluralidade religiosa. Trata-se de uma ameaça a liberdade de culto.




Sacerdotes e Sacerdotisas de terreiros do Rio de Janeiro apoiam a campanha. Foto feira durante as homenagend do Prêmio Iya Nitinha de Osun. Foto: Paula Jardim Duarte




Porque precisamos libertar o sagrado afro-brasileiro. 


A apreensão dessa coleção é um terrível crime contra a fé afro-brasileira. Mais do que objetos de culto sob o domínio do Estado racista, trata-se de representações vivas de divindades ancestrais africanas e das forças da natureza que são cultuadas. Nos ritos, os colares se tornam sagrados, os atabaques, após sacralizados, se transformam verdadeiras divindades, capazes de trazer as deusas e deuses, para a África que se reconstrói nos espaços do terreiros. As peças são todas sagradas por excelência. São imagens vivas, são corpos negros, e assim como a maioria dos corpos negros afro-brasileiros, foram e ainda são violentados e estão encarcerados no Museu da Polícia Civil pelo processo racista e eugenista que segue em curso desde a invasão das terras brasileiras pelos europeus. 

  Por todo esse histórico, se faz urgente que o Estado, para além do reconhecimento das violações ao longo dos séculos, estabeleça uma reparação histórica aos praticantes das religiões afro brasileiras. Desta maneira, cabe ao Estado algumas ações no que tange à reparação histórica dessas religiões que foram violentadas, criminalizadas e perseguidas pelos órgãos estatais. O primeiro passo para reparação histórica é a libertação do acervo sacro afro-religioso que se encontra no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. O segundo passo, é a criação de um Museu das Religiões de Matriz Africana que abrigue este e outros acervos, que exalte a história, a liturgia, as práticas, os objetos das religiões afro-brasileiras, e ao mesmo tempo que aborde a intolerância e o racismo religioso na história do Brasil. Da mesma maneira que as peças religiosas católicas estão no Museu de Arte Sacra do Rio de Janeiro, objetos sagrados dos judaicos encontram-se no Museu Judaico do Rio, este acervo afro religioso deve estar em um Museu que exalte e respeite o valor religioso, histórico e artístico dessas peças. 


Foto: Paula Jardim Duarte


Ações da campanha Liberte Nosso Sagrado


A articulação em torno da campanha Liberte Nosso Sagrado foi iniciada em março de 2017 a partir do contato com lideranças religiosas das diferentes religiões, pesquisadores ligados a universidade, representantes de organizações da sociedade civil. Uma primeira reunião de apresentação da campanha foi realizada a partir da iniciativa do Mandato Coletivo do Deputado Estadual Flávio Serafini (Psol), ocasião em que foram discutidos detalhes sobre como a campanha seria lançada. Ficou decidido que algumas ações seriam realizadas. Está sendo organizada uma representação para o Ministério Público que contará com a adesão de terreiros de candomblé e umbanda, organizações da sociedade civil e pesquisadores que se dedicaram ao tema nos últimos anos. Criamos uma página no facebook que está sendo atualizada diariamente com informações sobre atos públicos e através da qual todos nós podemos manifestar o nosso apoio com a publicação de uma foto com o cartaz da campanha com a #LiberteNossoSagrado.
 Em paralelo a essas ações, estão sendo realizadas reuniões com representantes de museus e instituições que possam receber essa coleção, pois o grande desafio é que ao longo desses anos não houve nenhum esforço de pesquisa que buscasse identificar o contexto em que as imagens foram apreendidas e/ou o terreiro de origem de cada peça. Também está sendo produzido pela Quiprocó Filmes o documentário “Nosso Sagrado”, em que será abordado o aprisionamento do acervo afro religioso no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde o início do século XX, através de entrevistas com parlamentares, pesquisadores, lideranças religiosas, museólogos e militantes da liberdade religiosa. As filmagens estão acontecendo e a previsão de lançamento é para o segundo semestre de 2017.



APOIE ESSA CAMPANHA. Imprima o cartaz, faça sua foto e publique com a tag #LiberteNossoSagrado




Fernando Sousa –Diretor da Quiprocó Filmes e pesquisador associado ao Instituto de Estudos da Religião (ISER). Dirigiu com Tais Capelini e Alexandre Borges o documentário “Intolerâncias da Fé” [Canal Futura], além de assinar o roteiro e a produção do filme. Junto com a Stela Guedes Caputo, dirigiu o vídeo “Axé com Freixo”, realizado no âmbito da candidatura de Marcelo Freixo para a prefeitura do Rio de Janeiro. É um dos colaboradores da campanha Liberte Nosso Sagrado e é um dos diretores do documentário “Nosso Sagrado”.


Gabriel Barbosa – Diretor da Quiprocó Filmes. Cursa o doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). É pesquisador associado ao Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ). É um dos colaboradores da campanha Liberte Nosso Sagrado e é um dos diretores do documentário “Nosso Sagrado”.


Jorge Santana – Coordenador da campanha Liberte Nosso Sagrado. É professor de História e Mestre em Ciências Sociais. Faz parte da equipe da campanha Liberte Nosso Sagrado e da equipe de produção e direção do documentário “Nosso Sagrado”.


Roger Cipó - Fotógrafo pela Escola São Paulo. Sua pesquisa de imagem etnográfica estuda as experiências de fé e relação de adeptos das religiões de matriz africana com os territórios sagrados e suas comunidades. É gestor da Olhar de um Cipó, plataforma digital contemplada com o Prêmio Almerinda Farias Gama para Comunicadores Negros (2016). Dentre seus trabalhos publicados e expostos estão as séries "Oju: Quando olhares contam histórias" (2013), "Oju Mimo" (2015), Gravidez Sagrada (2016), "A beleza da Identidade" - ensaio para o a publicação Ocupação Abdias do Nascimento (2016), e compôs o livro "Herança Africana no Rio de Janeiro", sob coordenação de Milton Guran. Seu trabalho mais recente é a exposição fotográfica "AFÉTO", que segue em cartaz até 2 de setembro de 2017, na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea, dentro da programação do FotoRio - Festival Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro.




30 de junho de 2017

Roger Cipó exibe registros inédito no Instituto Pretos Novos



Exposição fotográfica revela as relações de afeto nos terreiros de Candomblé


Será inaugurada no dia 08 de Julho, sábado, às 16 horas, a exposição ATO, de Roger Cipó, curadoria de Marco Antonio Teobaldo, na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea. Em sua primeira exposição individual, o fotógrafo volta toda a sua atenção para as relações de afeto constituídas dentro dos terreiros de Candomblé, a partir de sua experiência como iniciado na religião.

Depois de percorrer dezenas de terreiros no estado de São Paulo, Cipó foca sua pesquisa no  Asè Iya G'unté, localizado em Juquitiba, onde percorreu pelas rotinas mais comuns de seus adeptos, até às mais complexas. As imagens reveladas apresentam a interação dos fiéis entre si, como uma família ao redor de suas obrigações, e, durante as cerimônias, quando os orixás manifestam seu afeto por meio de seus sacerdotes.

De acordo com o artista, mais que um registro documental sobre um aspecto específico do Candomblé, o trabalho reitera a importância das relações interpessoais como forma de resistência da cultura afro-brasileira. O resultado da mostra se amplifica quando exibida sobre o sítio arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos, dentro da programação do festival de fotografia FotoRio.

A Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea tem acolhido dentro de sua programação diversas temáticas de exposições de Artes Visuais, realizadas por artistas contemporâneos do Rio de Janeiro e de outras localidades. A partir de pesquisa realizada pelo curador do espaço, Marco Antonio Teobaldo, os artistas convidados apresentam livremente suas propostas, tendo como ponto de partida as suas percepções acerca do ambiente expositivo e a importante história que ele abriga. Esta experiência tem superado expectativas e trazido excelentes resultados, que se refletem na crescente visitação que o espaço  vem recebendo, desde a sua inauguração e o Prêmio Ações Locais, concedido pela prefeitura.

Clique para página do evento e mais informações



Ficha técnica:
fotografia: Roger Cipó
curadoria: Marco Antonio Teobaldo
coordenação geral: Merced Guimarães dos Anjos
impressão: Estúdio Print
produção: Quimera Empreendimentos Culturais
parceria: FotoRio
realização: IPN

Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea
abertura: 08 de Julho de 2017 - 16h
visitação:  11 de Julho a a 02 de Setembro de 2017
terça à sexta (13h às 19h) e sábado (10h às 13h)
GRÁTIS

Rua Pedro Ernesto, 32 - Gamboa - Rio de Janeiro - fone: (21) 2516-7089
e-mail: pretosnovos@pretosnovos.com.br     -     instagram: @institutopretosnovos

Assessoria de Imprensa
Quimera Empreendimentos Culturais
f(21)98015-4444 - quimera.rio@gmail.com



28 de junho de 2017

Em memória a Mãe Beata, Nova Iguaçu institui Dia de Combate a Intolerância




Mãe Beata de Yemoja - Fonte: O Globo

No último maio, o Brasil ficou orfão com a passagem de Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de Yemoja. Naquela manhã fria de sábado, o povo de terreiro silenciou com os atabaques e os orixás do candomblé anunciaram o nascimento da vida ancestral de uma das sacerdotisas mais importantes da história. Foi também naquele dia que todo o bairro de Miguel Couto, na baixada fluminense (RJ), chorou a morte da sua ilustre moradora, que ali fundou, há 32 anos, o Ile Omi Oju Aro, e que em 2015 foi premiado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pela preservação da herança e tradição afro-brasileira.

Em memória e respeito ao seu legado, a Câmara de Nova Iguaçu (RJ) instituiu o Dia Municipal de Luta contra a Intolerância e Preconceito, a ser lembrado todo 27/05, dia da morte física de Mãe Beata. A notícia foi dada por publicação na página de Adailton Moreira, filho carnal e Babá Egbé do Ile Omi Oju Aro.




Cópia do documento publicado por Adailton Moreira, Babá Egbé 

Iyalorisá, escritora, militante dos direitos humanos e presidente da Ong Criola, Mãe Beata lutou incansávelmente pela dignidade dos povos de matriz africana, do movimento negro e periférico, e pelas mulheres. 

Para o povo de terreiro, a sacerdotisa abençoada por Yemoja e Esù vive em seu quilombo-terreiro. Vive na tradição que se perpetua, na luta contra o racismo religioso, no toque de cada atabaque, nos avanços das mulheres negras, em cada punho cerrado que se levanta por direitos de existir.

Clique Aqui e relembre uma das respostas mais lindas de Mãe Beata sobre o que é Candomblé, para Lazaro Ramos. 


Viva a história de Beatriz Moreira Costa! 
Mãe Beata, Presente!