Por Celso Monteiro, do Portal das Áfricas
Em
Esse ponto de partida de que trato aqui é quem possui a capacidade de reunir as forças contidas no passado, no presente e no futuro de cada um de nós, em uma perfeita sinergia entre a ancestralidade e a descendência. Esse doce encontro entre ancestrais e descendentes alimenta a nossa alma e gera a paz individual enquanto força para os próximos passos, alimentando-nos para o futuro. E, experimentar desse encontro implica muitas vezes em assumir ou fazer cumprir certos compromissos, responsabilidades e desejos que atravessam gerações.
A ancestralidade é um valor central, que serve de base para o Terreiro, mas mais do que isso, é o referencial de toda e qualquer pessoa . Aliada à descendência, a voz dos ancestrais se dá por meio dos diferentes caminhos da vida, seja no âmbito espiritual da consulta e dos ebós pré-determinados, seja cotidiana e rotineiramente, da porta de nossas casas pra fora, pra o mundo, na relação com a sociedade ampliada. Os entraves de uma vida tranquila também são parte desse encontro.
Eu não conheço nenhum investimento, exitoso, realizado por um homem nagô, que não tenha tido antes, a consulta, a permissão, o apoio ou a negativa dos Orixás. Não há investimento algum, seja de qual for sua envergadura, que se perpetue, sem conexão com a essência e origem do sujeito a que se propõe. Entre os critérios para o avanço do caminho, está a clareza de que todos os passos que damos, nós os descendentes de toda aquela gente, deve contar com a benção de nossos antepassados, para que se obtenha êxito. Para isso, a consulta ao oráculo sagrado, o ebó determinado e lucidez necessária para compreender a mensagem dos Orixás, quando a resposta for: não; pare; não vá; não avance!
Compreender que o caminho hoje é esse, mas amanhã é outro, foi negado ou permitido, tem ou não tem a permissão, inclui fatores outros como a legitimidade do meu desejo e o que eu faço com isso, já que a energia que se gera, envolve terceiros. Essa regra, conforme temos vivenciado na condução do Asé Igbin de Ouro, vale para atravessar a ponte do rio que cai, ou seja, o nosso pertencimento deve contar, também com certa disciplina, para além da reverência e do discurso. A mim parece anos depois que as pessoas vivem soltas por aí, desconectadas, ainda que pertencentes a este ou aquele clã. É como se estivessem vestidas com roupas transparentes.
Minha tese é que o pertencimento per si é mais que necessário e importante, mas não dá conta de questões que são anteriores, como o aprendizado, a educação, a disciplina e a participação que deveria ser o cerne da relação entre as pessoas e o sagrado, a partir de dentro de nossa casa, retroalimentando-se nessa caminhada em que a índole e o respeito aos costumes, deveriam estar em primeiro lugar. Essas regras e normas, parte do código nagô, no que incluem-se as reverências a quem chegou primeiro, são é claro, básicas, da conduta e, centrais para os próximos passos e a continuidade das coisas, porque com isso, dizia meu Pai que “se vai ao longe” identificando possibilidades múltiplas como o investimento no futuro, individual e coletivo.
Arrisco-me dizer, com base no pouco que eu conheço que as muitas articulações relacionadas ao desenvolvimento social, humano, coletivo ou individual, eram parte da educação ofertada por nossos avoengos, que serviam-se de recursos naturais, como a relação do homem com a natureza, com a sociedade e com seus antepassados. Esta descontinuidade é a razão pela qual, me assustam certas posições desse atual mundo liquido, moderno, de plástico. A guerra e a paz, espiritual, de cada um de nós, demarcaram sempre, as relações intercomunitárias de um povo, mas afetam as pessoas individualmente, não tenho dúvidas disso. Somos parte de um todo, por isso não somos gerados como ilhas e não podemos nos comportar dessa forma, insustentável.
Imagem da série aFÉto
Ouvi de um sacerdote nigeriano na infância (que saudades…), que era assim, na velha África, foi assim na cruzada das divindades do panteão africano e assim, se reproduziram na trajetória de cada um de nós, acumulando experiência á essa caminhada. Mas, parece que não apreendemos e não fixamos o conhecimento obtido, lamentavelmente. Do contrário, seria negar o aprendizado e dizer que ele não serve, mas não há substituição.
Provocado pelos limites entre a religião e a ciência, a mim parece, já há algum tempo, que nesse mundo líquido que tanto debruçou-se Bauman e outros intelectuais que são algumas das minhas importantes referenciais, que é tudo tão solto, desconectado, que pouco importa a lição ofertada e a orientação dos Sacerdotes, das Sacerdotisas, mesmo quando mais antigos, vividos, experientes. As coisas vão e vem, surgem ou aparecem, de forma não contabilizada, pois o sujeito embora “lá de casa” tem lidado com o acaso, com o talvez e, por conseguinte, com o “que assim seja” sem lembrar a necessidade de pedir licença, de levar água à rua, de esfriar a terra onde pisa, de agradecer pelo sol nascente e o sol poente, de levantar-se para os velhos sentarem-se ou de controlar o discurso e a forma como ele é proferido, muitas vezes sem o aporte e o caráter necessário para tal e, a necessária reformulação de suas práticas.
Não pretendo, porém, construir aqui, um manual para a vida plena, mas, diante da intolerância religiosa que tanto aflige cada um de nós, diária e rotineiramente, vale lembrar, que muitas vezes em meio à caminhada, é central voltar às encruzilhadas da vida e indagar de onde viemos, porque estamos e para onde iremos.
São tantas as nuances da atual vida em sociedade, que as pessoas esquecem que a vida no mundo dos homens e dos deuses, se entrelaçam, interagem, dialogam e se rompem, a cada passo, a cada palavra, a cada iniciativa, inclusive com a permissão para tal, quando necessária. A vida em sociedade a partir desse lugar tão vívido deve considerar a conexão entre vivos e mortos, o fogo e a água, o carvão e a pemba branca, os grandes e os pequenos, o sal e o mel, por serem esses elementos, um complementar ao outro, com funções diversas e posições múltiplas. Sem essa conectividade que deveria por fim, alinhavar as vinte e quatros horas do dia, fica a vida, inviável, mentirosa. É aqui, nesta encruzilhada (a possibilidade de fazer escolhas), que está apoiada a ideia de que é possível ser responsável ou descompromissado com os códigos culturais, da família, da comunidade, conforme os valores da tradição, mas é claro, com o peso da mão de nossos desejos.
Não há como sustentar a religiosidade que começa e termina no momento do culto, na hora da cerimônia pública, no dia da festividade. É insustentável a falsa paz, mas é obvio que o desejo tem lugar certo na tradição e seu preço a pagar, afinal, a consciência e a reação do universo são juntas, o primeiro e talvez o mais exigente crivo. E há momentos em que o peso da mão de nossos antepassados não é de uma surra, mas sim, do fato de que não foram convidados a opinar. Assim, é preciso andar com a certeza de aquele trajeto já foi feito por alguém, que sabe aonde ele vai dar, que gostou do trajeto ou não obteve felicidade nele. Mais que isto: ali está a possiblidade de não sofrer e de não prejudicar ninguém, o que eu entendo ser magnifico, pois resultará em andar com dignidade, sem ser apontando por ninguém, por motivo algum. Para tanto, é preciso postura e comprometimento com o sagrado, pois não basta vestir-se de branco e sair por aí, desconectado, sem vinculo, sem respaldo!
Agora, me responda muito francamente: aonde você pensa que vai sem pedir licença?
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