5 de setembro de 2016

Religião, religiosidade e relações étnico-raciais no Brasil segundo os Censos de 2000 e 2010


Religião, religiosidade e relações étnico-raciais no Brasil segundo os Censos de 2000 e 2010: contribuições ao debate sobre a violência, cultura de paz, identidade e pertencimento.

Já vivenciamos a oportunidade de olhar para os dados do IBGE sobre religião no Brasil, em outro momento, para analisarmos as informações referentes à quantidade de fieis das diferentes religiões, tradições e filosofias praticadas no Brasil. Pierucci inclusive, nos fez em vida, várias provocações, das quais muitas, só o tempo poderia responder. Em meio a tais números, falou-se de certo cansaço das religiões consideradas majoritárias e de tal mercado da fé, que exclui do acesso a Deus, em alguns casos, os mais vulneráveis.
Aqui, hoje, interessa-nos o enfrentamento à intolerância religiosa e ao racismo, considerando o perfil de quem pertence às comunidades religiosas. Vale lembrar que a presença negra em determinadas tradições deveria ser símbolo significativo e pulsante, ao invés de rechaçada, seja pela via da pobreza, seja pela questão única e exclusivamente da cor da pele, mas não é assim que o mercado funciona. Ao mesmo tempo, as tradições étnicas, assumiram outra postura e tornaram-se universais, dizem alguns dos estudiosos da área. É como, segundo eles, se todos fossem bem vindos e se tornassem parte, pertencessem, assim, pura e simplesmente.
Ocorre que tais números são, em tese, as bases para o dialogo sobre o que acontece no Brasil atual e, aqui deve nos ajudar a refletir sobre as coisas de dentro de casa, para aí sim, irmos à luta, alimentados com informações traduzidas, o que por si só, altera o processo. Desta forma, com essas breves reflexões sobre o cenário atual, damos um passo pra trás e convidamos todos, a avaliar tal cena a partir dos nossos referenciais, sobretudo, no que refere-se á prática e a realidade de cada uma das comunidades tradicionais de Terreiros, pois não tenho, é óbvio, a pretensão de trazer aqui lições à vigários. Não trata-se, portanto, de uma pesquisa cientifica, mas sim, de uma reflexão a partir do que já foi constatado.

Diante de um país cujo catolicismo sempre foi considerado uma de suas características principais, as mudanças estruturantes no terreno político, também seguem a onda por vezes fundamentalista e em outras vezes, conservadora, ao ponto de brecar toda e qualquer discussão sobre os assuntos relacionados ao tema. A estratégia tem sido historicamente, minar a pauta ou diminuí-la, em nome da universalidade do sistema, porque afinal, tudo que foi criado, acolhe a todo mundo, independente das diferenças que existem entre nós, dizem os especialistas. E, como em um Brasil nem tão distante assim, apenas os cristãos eram considerados gente –afinal, preto não tem alma– a tradição brasileira hierarquizou as religiões chamadas majoritárias de forma a valorizar a cultura e os ditames da Santa Igreja Católica, o luteranismo e só depois a Umbanda, que aqui vou chamar de: modelo aceito.
No Censo de 2000, foi questionado qual a religião dos brasileiros e, tais religiões foram classificadas nos seguintes grupos: Católica Apostólica Romana, Evangélicas (de missão, de origem pentecostal, outras religiões evangélicas), Espírita, Espiritualista, Umbanda, Candomblé, Judaica, Budismo, as Religiões Orientais, Islâmica, Hinduísta, Tradições Esotéricas, Tradições Indígenas, Outras Religiosidades, Sem Religião e Não-determinadas. Importante lembrar alguns aspectos importantes:
  1. a importância que possui a múltipla pertença, afinal, este é um país em que as pessoas vão à missa no domingo de manhã, mas buscam a benção dos Orixás em diferentes momentos da vida, no que destaca-se a busca por respostas à questões pessoais ou do âmbito da família;
  2. a presença massiva do catolicismo nas áreas rurais e na área urbana, no que deve-se considerar a migração (aparentemente mais acirrada na última década, já que há uma presença visível nas ruas e um debate intenso sobre direitos básicos) e, a tendência de declínio da Igreja Católica, amplamente comentada, além da troca de uma religião pela outra, a gosto do freguês;
  3. o perfil de quem conduz e, como se dão as ações de enfrentamento à intolerância religiosa e o combate ao racismo, no país, considerando a importância das ações afirmativas já que, acrescentam valor à consciência negra brasileira;
  4. a encruzilhada da intolerância religiosa com o preconceito racial, que ainda mantêm-se associadas na cena brasileira, implicando na organização do debate sobre o perfil do povo de santo.

Assim, é importante considerar que:
As grandes tendências reveladas pelo Censo Demográfico 2000, dentre outros aspectos, estão na grande variedade de religiões concentradas na área urbana do País, que é crescente; que as mulheres são maioria na declaração das religiões e o excedente de homens foi encontrado de forma acentuada no grupo dos sem religião. O Brasil continua sendo mais católico apostólico romano, entretanto, com um ritmo de crescimento pequeno; e que a segunda maior proporção de pessoas religiosas correspondem aos evangélicos, com marcante crescimento dos pentecostais (IBGE, p. 49:2011)
De qualquer forma, estamos falando de um fenômeno social importante: o pertencimento das pessoas a uma determinada religião, bem como suas cores e raças, fator este, que deve nos ajudar na reflexão sobre o advocacy tão necessário para a atualidade.

Os números das diferentes religiões praticadas no Brasil
No que refere-se ao Censo entre 1940 e 2000, os católicos, em 1940 eram 95,2% da população, em 1980 eram 98,2% e, no ano 2.000 eram 73,8%. Os evangélicos em 1940 eram 2,6% da população, em 1980 eram 6,6% e, em 2.000 eram 15,4%. Os declarados sem religião em 1940 eram 1,9%, em 1980 eram 1,6% e em 2.000 eram 7,3%.
Em números absolutos, as religiões do Brasil no ano 2000, contavam com: 124.976.912 católicos romanos (73,77% da população brasileira); 26.166.930 evangélicos (15,44% da população); 2.337.432 espíritas (1,38% da população); 571.329 entre os afro-brasileiros (0,34%), com uma presença de 432.001 de Umbanda (0,26) e 139.328 de candomblé (0,08), que notem, não estão aqui somados como religiões afro-brasileiras e sim, divididos entre uma e outra. Sabemos também que há mais que dez diferentes religiões agrupadas sobre a marca do candomblé, mas não conseguiremos ver esta diversidade no trabalho do IBGE.
Os resultados do Censo Demográfico 2010 mostram o crescimento da diversidade dos grupos religiosos no Brasil, revelando uma maior pluralidade nas áreas mais urbanizadas e populosas do País. A proporção de católicos seguiu a tendência de redução observada nas duas décadas anteriores, embora tenha permanecido majoritária. Em paralelo, consolidou-se o crescimento da parcela da população que se declarou evangélica. Os dados censitários indicam também o aumento do total de pessoas que professam a religião espírita, dos que se declararam sem religião, ainda que em ritmo inferior ao da década anterior e do conjunto pertencente a outras religiosidades (IBGE; p. 90:2010).
No que refere-se à educação, para o IBGE o nível educacional da população religiosa revela que os espíritas apresentaram a maior média de anos de estudo: 9,6 anos de estudo. A média para pessoas que se declararam da umbanda e do candomblé foi de 7,2 anos de estudo, dos evangélicos de missão 6,9%, dos católicos apostólicos romanos 5,8 anos de estudo, os declarados sem religião possuem 5,6 anos de estudo, e os evangélicos pentecostais 5,3 anos de estudo.
Em primeira instância, os adeptos de religiões afro-brasileiras estão estudando mais que os evangélicos e, os sem religião, mais do que os evangélicos pentecostais.
Além disso, a maior proporção de pessoas que se autodeclaram da cor branca no campo da religiosidade brasileira, são: judaica (96,4%), evangélica de missão luterana (95,8%) e islamismo (88%). As religiões com maior proporção de pessoas que se declararam pretas são: candomblé (22,8%), umbanda (16,7), casa da benção (10%) e sem religião (9,3%). As religiões com maior proporção de pardos são as seguintes: Católica Apostólica Brasileira (48,5%), Assembléia de Deus (47,5%) e Deus É Amor (45,9%). As maiores proporções de amarelos estão no Budismo (37,8%) e outras novas religiões orientais (36,6%).
Esses números como todos sabem, não são de Terreiros ou Igrejas constituídas, mas sim, de pessoas que se declararam religiosas no país, mas ao estudar tais números, é possível analisá-los por região do país, mas ainda não por município, como era o meu desejo inicial. Ser 0,34% da população, nas religiões afro-brasileiras em 2.000 nos parece pouco, já que nossa percepção é de que a comunidade ampliada é muito mais intensa e fervorosa. Quando olhamos para as festividades públicas, como a Festa de Iemanjá no Rio Vermelho, a Festa de Ogún no Ginásio do Ibirapuera e, mais recentemente, as manifestações políticas, a exemplo da Caminhada contra a Intolerância Religiosa no Rio de Janeiro, tem-se a ideia de uma grande quantidade de fiéis, que podem ser melhor visualizados nas inúmeras cerimônias de todos os sábados a noite, nas periferias das grandes cidades, onde não por acaso, estão as favelas e parte considerável da população negra brasileira, convivendo com o racismo, o preconceito, a discriminação e a intolerância religiosa.
Mãe Gilda, que morreu pós-enfarte seguido da violência gerada pela intolerância, bem como os inúmeros Terreiros derrubados pelo Estado como no caso da Bahia, ou invadidos por evangélicos neopentecostal, representam e muito bem, os motivos que alimentam o tema. Somam-se a isto, os inúmeros casos de perseguição dos Terreiros pelo Estado nos anos 1.800, as práticas que envolvem a relação entre Polícia Militar e as comunidades tradicionais de Terreiro e, o fundamentalismo, que norteia o debate sobre a homofobia, o direito das mulheres de abortar, além do caso clássico de intolerância vivenciado por crianças e adolescentes seguidores do candomblé, nas salas de aula de todo o território nacional e a violência imposta ao povo de santo junto ao SUS – Sistema Único de Saúde, em função de sua crença, também em todo o país (MONTEIRO, C.R. Portal Áfricas, Julho, 2015).
Quando avaliados os números do Censo de 2010, tem-se que, o povo de santo declarou-se 0,3% de seguidores da Umbanda e do Candomblé (juntos), sem diferença da pesquisa anterior, mas com uma divisão diferente, considerando a maioria destes, concentrada na região sul do país, com 0,5% desse total que agora, são 0,6%, quando no Nordeste era em 2.000 um total de 0,1 e agora, são 0,2% da população de residentes.


Relações étnico-raciais, racismo e identidade: questões do pertencimento e das relações sociais.
 Quando questionadas cor e raça do total da população, soube-se que a proporção de pardos aumentou de 38,45% para 43,13% e os pretos, foram de 6,21% para 7,61%, mas os brancos decaíram de 53,74% para 47,73%. Assim, a população negra (pretos e pardos juntos) demonstrou-se a maior parte da população. E, dizem os especialistas essa mudança diz respeito diretamente aos jovens de 15 a 24 anos, que se declaram pretos ou pardos, mais que os adultos, visto que “há mais declarações de jovens pardos (16 milhões) do que pretos (2,5 milhões), tendência semelhante à do grupo de adultos…”. Essa mudança pouco se percebe no cotidiano, mas está sempre muito relacionada ao como se sentem, como se percebem e à forma como elas se relacionam com as regras que compõem as suas comunidades (no que incluem-se as instituições religiosas) e, a forma como são vistas pela sociedade ampliada.
São inúmeras as cenas políticas e pedagógicas em que as religiões são parte importante, quando avaliamos, por exemplo, a conjuntura do país, pois, formam opiniões. Essa informação é importante para a construção da resposta que tais segmentos oferecem a problemas sociais relevantes, como é o caso das relações étnico-raciais, onde há um silêncio, que considero enorme.
Natural, avalio que as áreas mais urbanizadas reúnam uma quantidade maior de fieis, visto que nas grandes cidades está a busca pelo desenvolvimento, em meio ao capitalismo e as possibilidades de avanço profissional, entre outros, razão pela qual concentra-se a grande maioria (sempre em disputa). A mudança de uma religião pela outra compõem, a meu ver, essa busca cujo buraco é muito mais embaixo. E, quanto ao que diz respeito ao numero de espíritas, é importante lembrar que para além dos reais seguidores de Kardec, parte dos seguidores de religiões afro-brasileiras, sobretudo entre os mais velhos, declara-se cotidianamente ainda hoje, como espíritas, usando o argumento de que lidam com espíritos, ou como católicos, em função da perseguição ainda constante. Ainda assim e, salvas as proporções, a forma como as pessoas apresentam-se diante da pesquisa, nos aponta varias facetas, que não são exclusividade das religiões afro-brasileiras, como vemos abaixo:

Considerando o período de 2000 a 2010, observou-se, ainda, o aumento expressivo do segmento da população que apenas respondeu ser evangélica, não se declarando, portanto, como de missão ou de origem pentecostal. Confirmou-se a tendência de crescimento do segmento de evangélicos pentecostais, o que ocorreu em todas as Grandes Regiões do País. A parcela da população que se declarou evangélica de missão teve ligeira redução proporcional, caracterizando estabilidade em sua participação relativa no total da população. Neste aspecto, houve diferenciações regionais, sendo esse fenômeno evidenciado nas Regiões Sul e Sudeste, onde historicamente os evangélicos de missão eram mais numerosos. O contingente populacional de católicos teve redução em todas as Grandes Regiões do Brasil, mantendo-se mais elevada nas Regiões Nordeste e Sul. Na Região Norte foi onde ocorreu a maior redução relativa dos adeptos do catolicismo. E entre os espíritas, o aumento mais expressivo foi observado nas Regiões Sudeste e Sul… (IBGE; p. 91:2011).

E como já vimos: O Mapa da Violência nos informa em 2014, que a atuação do Disque 100 registrou 149 denúncias de discriminação religiosa no País.  Mais de um quarto (26,17%) ocorreu no estado do Rio de Janeiro e 19,46%, em São Paulo. Em 2013 foram registradas 228 denúncias. O Portal Brasil nos informa que “o Disque Direitos Humanos (Disque 100) recebeu 252 denúncias relacionadas à discriminação religiosa ao longo de todo o ano passado. Se comparado a 2014, quando as demandas chegaram a 149, o número representa aumento de 69,3%. Dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) revelaram ter havido 756 denúncias entre 2011 e 2015.” Atenção, um dado fala muita coisa, mas pode ser que o outro não queira escutar.

A sistematização dos dados, diz a sociologia, deve nos levar a mais qualificada reflexão e, por conseguinte à necessária mudança de contexto. Essa reflexão, por conseguinte, deve apontar para uma intervenção dura, forte, sustentável, que nos tire do campo do discurso, para o universo da ação, às vezes programática, na comunidade que lideramos, na relação com a comunidade do outro bairro, da outra cidade, sem perder o foco e articulando-se com as organizações do Estado laico, democrático e de direito, em busca de respostas concretas que tenham impacto direto na vida social e coletiva… Embora entre 2014 e 2015 haja um aumento de cerca de 276% de denuncias, que reflete as ações sociais deflagradas para combater a intolerância, é preciso mais do que a acolhida oferecida pela União. Nem sempre esse país capitaneou dados dessa natureza. Mas isso é pouco.
Em meio à caminhada pude constatar que, no que refere-se à intolerância religiosa:
[…] a promoção de uma cultura de paz depende de um combate real, que prefiro chamar de enfrentamento à intolerância. Não há nem aqui, entre nós, nem na periferia mais pobre desta cidade sequer uma possibilidade de paz, diante da presença de inúmeras necessidades básicas do cidadão, seja ele da tribo que ele for. Cultura de paz está intrinsecamente ligada a desenvolvimento humano, social, coletivo e individual. Este desenvolvimento humano que me refiro, deve ser sustentável, para todas as pessoas em cada lugar desta cidade, em cada viela de nossos bairros, pois do contrário a cultura de paz continuará convivendo com sua maior vilã, a desigualdade e se assim for, continuaremos aqui é claro, enfrentando estes desafios, mas sem a tecnologia que beneficia uns e, exclui os outros, o que acho um prejuízo. Se o acesso aos bens, aos serviços e o total da riqueza não for um facilitador, a intolerância religiosa e as discriminações correlatas serão cada vez mais um elemento contribuinte no declínio da ordem e do progresso. Desta forma, a doença, o mal, o medo, a discriminação e tantos outros aspectos ardilosos da vida, ganharão espaço na reforma que a gente quer fazer no outro, o que implica em fazê-la primeiro, em cada um de nós. Cultura de paz e não violência, além do enfrentamento às desigualdades, à intolerância e à discriminação, perpassa pela lógica da reorganização da sociedade, da cidade, do bairro, da casa da gente. (MONTEIRO, C.R. Portal Áfricas, Julho de 2015).
Nada simples, visto que aqui estão relacionados fatores como pertencimento e identidade, o que considero importante também para a auto declaração. Diante disto, é importante questionar se as pessoas conseguem se enxergar nesse quadro e, o como elas se encaixam nessa cena, já que os casos de intolerância registrados pelas instituições competentes não dialogam com o que estamos vendo aqui.

Publicado originalmente em Portal Áfricas, por Celso Monteiro, [i] Sacerdote do Asé Igbin de Ouro. Contatos: montcelso@yahoo.com.br . Fotos que ilustram a matéria: Roger Cipó - Olhar de um Cipó
Referencias:
BRASIL. Censo 2.000. IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do Brasil.
MONTEIRO. Celso R. Intolerância Religiosa à luz do Direito: o caso das tradições de matrizes africanas, a laicidade do Estado e o Brasil atual. Portal Áfricas, 2015.

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